100 MYTOS

3.02.2006

Douro navegado pela minha infância.





Viagens na Minha Terra

..

Ás vezes, passo horas inteiras

Olhos fitos nestas traseiras,

Sonhando o tempo que lá vai;

e jornadeio em fantasia

Essas jornadas que eu fazia

Ao velho douro, mais o meu pai.

..

Que pitoresca era a jornada!

Logo, ao subir da madrugada,

Prontos os dois para partir:

- Adeus! adeus! é curta a ausência,

Adeus! - rodava a diligência

Com campaínhas a tinir!

..

E, dia e noite, aurora a aurora,

Por essa doida terra fora,

Cheia de cor, de luz, de som,

Habituado à minha alcova

Em tudo eu via coisa nova,

Que bom que era, meu Deus! Que bom!

..

Moinhos ao vento! Eiras! Solares!

Antepassados! Rios! Luares!

Tudo isso eu guardo, aqui ficou:

Ó paisagem etérea e doce,

Depois do ventre que me trouxe

A ti devo tudo o que sou!

..

No arame oscilante do fio,

Amavam (era mês do cio)

Lavandiscas e tentilhões...

Águas do rio vão passando

Muito mansinhas, mas, chegando

Ao mar, transformando-se em leões!

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Ao sol, fulgura o Oiro dos milhos!

Os lavradores mai-los filhos

A terra estrumam, e depois

Os bois atrelam ao arado

E ouve-se além, no descampado

Num ímpeto, aos berros: - Eh! Bois!

..

E, enquanto a velha mala-posta,

a custo vai subindo a encosta

Em mira ao lar dos meus avós,

Os aldeãos, de longe, alerta,

Olham pasmados, boca aberta...

A gente segue e deixa-os sós.

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Que pena faz ver os que ficam!

Pobres, hunildes, não implicam,

Tiram com respeito o chapéu:

Outros, passando a nosso lado,

Diziam: "Deus seja Louvado!"

"Louvado seja!" dizia eu.

..

E, meiga, tombava a tardinha...

No chão, jogando a vermelhinha,

Outros vejo a discutir.

Carpiam, místicas, as fontes...

Água fria de Trás-os-Montes

Que faz sede só de se ouvir!

..

E, na subida de Novelas,

O rubro e gordo Cabanelas

Dava-me as guias para a mão:

Isso... queriam os cavalos!

Que eu não podia chicoteá-los...

Era uma dor de coração.

..

Depois, cansados da viagem,

Repoisávamos na estalagem

(Que era em Casais, mesmo ao dobrar...)

Vinha a Sra. Ana das Dores

"Que hão-de querer os meus senhores?

Há pão e carne para assar..."

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Oh! ingénuas mesas, honradas!

Toalhas brancas, marmeladas,

Vinho virgem no copo a rir...

O cuco da sala, cantando...

(Mas o Cabanelas, entrando,

Vendo a hora: É preciso partir").

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Caia a noite. Eu ia fora,

Vendo uma estrela que lá mora,

No firmamento português:

E ela traçava-me o meu fado

"Serás poeta e desgraçado!"

Assim se disse, assim se fez.

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Meu pobre Infante, em que cismavas,

Por que é que os olhos profundavas

No céu sem-par de teu País?

Ias, talvez, moço troveiro,

A cismar num amor primeiro:

Por primeiro, logo infeliz...

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E o carro ia aos solavancos.

Os passageiros, todos brancos,

Ressonavam nos seus gabões:

E eu ia alerta, olhando a estrada,

Que em certo sítio, na Trovoada,

Costumavam saír ladrões.

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Ladrões! Ó sonho! Ó maravilha!

Fazer parte duma quadrilha,

Rondar, á lua , entre pinhais!

Ser Capitão! trazer pistolas,

Mas não roubando, - dando esmolas

Dependurados dos punhais...

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E a mala-posta ia indo, ia indo.

O Luar, cada vez mais lindo,

Caía em lágrimas, - e, enfim,

Tão pontual, ás onze e meia,

Entrava, soberba, na aldeia

Cheia de guizos, tlim, tlim, rlim!

..

Lá vejo ainda a nossa casa

Toda de lume, cor de brasa,

Altiva, entre árvores, tão só!

Lá se abrem os portões gradeados,

lá vêm com velas os criados,

Lá vêm, sorrindo, a minha Avó.

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António Nobre ..." As Viagens na Minha Terra"