100 MYTOS

9.29.2006

Natália Correia



jornal Público


Auto-retrato


Espáduas brancas palpitantes:
asas no exilio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.


De alma aberta


Tomai-me as ancas fartas dão para égua
e as açucenas que ainda são mamudas.
Dos olhos tomai pranto, é boa rega,
já que a chorar por vós vos dei fartura.


Dos ouvidos, silvos que os ocuparam
tomai que até farelo pus em música.
Calo a farinha. Anjos a trituraram.
De agro celeste, o grão não mói a Musa.


De árduos sentidos que chamais pecados
tomai só os mortais. Dão uma récua.
Dos imortais nem um que são velados
por vapores de alvorada paraclética.


Tomai riso também se quereis folia:
mete rabeca e balho o Sprito Santo.
Nos fúlgidos milagres da pombinha
embuça-se o divino no profano.


Tomai polme a ferver de ilhoa irada,
mesmo o coice que dá depois de morta.
Eu deito fogo para não ser queimada.
Mas serva e cerva sou por trás da porta.


Tomai gestos que são dos sete palmos
e para vermes eu não ponho a rubrica.
De publicar-me em pó estais perdoados.
Devo-me eterna vendida em hasta pública.


Traficantes de peles, à puridade
vos digo: só mentira arrecadais.
Porque tal como o lótus, a verdade
vos dou na comunhão que não tomais.


Como dizer o silêncio?


Se em folhagem de poema
me catais anacolutos
é vossa a fraude. A gema
não desce a sons prostitutos.


O saltério, diletante,
fere a Musa com um jasmim?
Só daí para diante
da busca estará o fim.


Aberta a porta selada,
sou pensada já não penso.
Se a Musa fica calada
como dizer o silêncio?


Atirar pérola a porco?
Não me queimo na parábola.
Em mãos que brincam com o fogo
é que eu não ponho a espada.


Dos confins, o peristilo
calo com pontas de fogo,
e desse casto sigilo
versos são só desafogo.


E também para que me lembrem
deixo-os no mercado negro,
que neles glórias se vendem
e eu não sou só desapego.


Raiz de Deus entre os dentes,
aí, pára a transmissão.
Ultra-sons dessas nascentes
só aves entenderão.

Natália Correia

2 Comments:

  • "De amor nada mais resta que um Outubro
    e quanto mais amada mais desisto:
    quanto mais tu me despes mais me cubro
    e quanto mais me escondo mais me avisto.

    E sei que mais te enleio e te deslumbro
    porque se mais me ofusco mais existo.
    Por dentro me ilumino, sol oculto,
    por fora te ajoelho, corpo místico.

    Não me acordes. Estou morta na quermesse
    dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
    nem teus zelos amantes a demovem.

    Mas quanto mais em nuvem me desfaço
    mais de terra e de fogo é o abraço
    com que na carne queres reter-me jovem."

    (Natália Correia)


    Por acado não saberá o autor deste magnifico retrato?
    Poderei "levá-lo" daqui?

    Obrigada.

    Abraço ;)

    By Anonymous Anónimo, at 1:36 da tarde  

  • Ressalvo: Onde se lê "acado" deverá ler-se acaso.
    As minhas desculpas pelo erro. Escrever sem olhar, faz isto...
    ;)

    By Anonymous Anónimo, at 1:39 da tarde  

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