Mário de Sá Carneiro IX
Sete Canções de Declínio
1
Um vago tom de opala debelou
Prolixos funerais de luto de Astro —
E pelo espaço, a Oiro se enfolou
O estandarte real - livre, sem mastro.
Fantástica bandeira sem suporte,
Incerta, nevoenta, recamada —
A desdobrar-se como a minha Sorte
Predita por ciganos numa estrada...
2
Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.
- Desçamos panos de fundo
A cada hora vivida.
Desfiles, danças — embora
Mal sejam uma ilusão...
— Cenários de mutação
Pela minha vida fora!
Quero ser Eu plenamente:
Eu, o possesso do Pasmo.
— Todo o meu entusiasmo,
Ah! que seja o meu Oriente!
O grande doido, o varrido,
O perdulário do Instante —
O amante sem amante,
Ora amado ora traído ...
Lançar as barcas ao Mar —
De névoa, em rumo de incerto ...
— Pra mim o longe é mais perto
Do que o presente lugar.
... E as minhas unhas polidas —
Idéia de olhos pintados
Meus sentidos maquilados
A tintas desconhecidas
Mistério duma incerteza
Que nunca se há-de fixar...
Sonhador em frente ao mar
Duma olvidada riqueza ...
— Num programa de teatro
Suceda-se a minha vida:
Escada de Oiro descida
Aos pinotes, quatro a quatro! ...
3
— Embora num funeral
Desfraldemos as bandeiras:
Só as Cores são verdadeiras —
Siga sempre o festival!
Quermesse - eia! — e ruído!
Louça quebrada! Tropel!
(Defronte do carrossel,
Eu, em ternura esquecido...
Fitas de cor, vozearia —
Os automóveis repletos:
Seus chauffeurs - os meus afetos
Com librés de fantasia!
Ser bom... Gostaria tanto
De o ser... Mas como? Afinal
Só se me fizesse mal
Eu fruiria esse encanto.
— Afetos? Divagações
Amigo dos meus amigos
Amizades são castigos,
Não me embaraço em prisões!
Fiz deles os meus criados,
Com muita pena — decerto.
Mas quero o Salão aberto,
E os meus braços repousados.
4
As grandes Horas! — vivê-las
A preço mesmo dum crime!
Só a beleza redime —
Sacrifícios são novelas.
"Ganhar o pão do seu dia
Com o suor do seu rosto"...
— Mas não há maior desgosto
Nem há maior vilania!
E quem for Grande não venha
Dizer-me que passa fome:
Nada há que se não dome
Quando a Estrela for tamanha!
Nem receios nem temores,
Mesmo que sofra por nós
Quem nos faz bem. Esses dós
Impeçam os inferiores.
Os Grandes, partam — dominem
Sua sorte em suas mãos:
— Toldados, inúteis, vãos,
Que o seu Destino imaginem!
Nada nos pode deter:
O nosso caminho é de Astro!
Luto — embora! — o nosso rastro,
Se pra nós Oiro há-de ser! ...
Vaga lenda facetada
A imprevisto e miragens —
Um grande livro de imagens,
Uma toalha bordada ...
Um baile russo a mil cores,
Um Domingo de Paris —
Cofre de Imperatriz
Roubado por malfeitores ...
Antiga quinta deserta
Em que os donos faleceram —
Porta de cristal aberta
Sobre sonhos que esqueceram ...
Um lago à luz do luar
Com um barquinho de corda...
Saudade que não recorda —
Bola de tênis no ar ...
Um leque que se rasgou —
Anel perdido no parque —
Lenço que acenou no embarque
De Aquela que não voltou ...
Praia de banhos do sul
Com meninos a brincar
Descalços, à beira-mar,
Em tardes de céu azul ...
Viagem circulatória
Num expresso de wagons-leitos —
Balão aceso — defeitos
De instalação provisória ...
Palace cosmopolita
De rastaquouères e cocottes —
Audaciosos decotes
Duma francesa bonita ...
Confusão de music-hall
Aplausos e brou-u-há —
Interminável sofá
Dum estofo profundo e mole
Pinturas a ripolin,
Anúncios pelos telhados —
O barulho dos teclados
Das Linotype do Matin ...
5
Manchete de sensação
Transmitida a todo o mundo —
Famoso artigo de fundo
Que acende uma revolução ...
Um sobrescrito lacrado
Que transviou no correio,
E nos chega sujo — cheio
De carimbos, lado a lado ...
Nobre ponte citadina
De intranqüila capital —
A umidade outonal
Duma manhã de neblina ...
Uma bebida gelada —
Presentes todos os dias...
Champanhe em taças esguias
Ou água ao sol entornada ...
Uma gaveta secreta
Com segredos de adultérios...
Porta falsa de mistérios —
Toda uma estante repleta:
Seja enfim a minha vida
Tarada de ócios e Lua:
Vida de Café e rua,
Dolorosa, suspendida —
Ah! mas de enlevo tão grande
Que outra nem sonho ou prevejo...
- A eterna mágoa dum beijo,
Essa mesma, ela me expande ...
6
Um frenesi hialino arrepiou
Pra sempre a minha carne e a minha vida.
Fui um barco de vela que parou
Em súbita baía adormecida ...
Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e anil,
Na idéia de um país de gaze e abril,
Em duvidosa e tremulante imagem ...
Parou ali a barca — e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou... — ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo ...
... Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguescida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor-de-rosa,
As torres de platina e de saudade.
Avenidas de seda deslizando,
Praças de honra libertas sobre o mar —
Jardins onde as flores fossem luar;
Largos - carícias de âmbar flutuando ...
Os palácios a rendas e escumalha,
De filigrana e cinza as Catedrais —
Sobre a cidade, a luz — esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais ...
Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
Uma Veneza de capricho — solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada ...
Exílio branco — a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos — seu brou-u-há...
E na Praça mais larga, em frágil cera,
Eu — a estátua "que nunca tombará" ...
7
Meu alvoroço de oiro e lua
Tinha por fim que transbordar...
— Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E não a posso ir apanhar!
Mário de Sá Carneiro, ...Paris, Julho e Agosto de 1915
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