100 MYTOS

2.29.2008

Cesário


Em 25 de Fevereiro de 1855 nascia em Lisboa o poeta Cesário Verde. Filho do lavrador e comerciante José Anastácio Verde e de Maria da Piedade dos Santos Verde, Cesário matriculou-se no Curso Superior de Letras em 1873, frequentando por apenas alguns meses o curso de Letras. Ali conheceu Silva Pinto, grande amigo pelo resto da vida. Dividia-se entre a produção de poesias (publicadas em jornais) e as actividades de comerciante, herdadas do pai.
Em 1877 lhe começou a dar sinais a tuberculose, doença que já lhe tirara o irmão e a irmã. Estas mortes servem de inspiração a um de seus principais poemas, Nós.
De poesia delicada, Cesário empregou técnicas impressionistas, com extrema sensibilidade ao retratar a Cidade e o Campo, seus cenários prediletos. Evitou o lirismo tradicional, expressando da forma mais natural possível.
As duras condições de trabalho, o sofrimento (doença; pobreza; humilhação) a que estão condenados os mais fracos, a par da exaltação da energia do povo trabalhador e da condenação do egoísmo e frieza dos poderosos, são questões que estão presentes na poesia de Cesário Verde foi o primeiro poeta homossexual português assumido.
Para Cesário Verde ver é perceber o que se esconde na realidade, é captar as impressões que as coisas lhe deixam e, por isso, percepciona o real minuciosamente através dos sentidos e reflete essa mesma impressão que o exterior deixa no interior do sujeito poético. Ou seja, o real exterior é apreendido pelo mundo interior que o interpreta e recria com grande nitidez, numa atitude de captação de real pelos sentidos, com predominância dos dados da visão: a cor, a luz, o recorte e o movimento.
Cesário Verde tenta curar-se da tuberculose, sem sucesso; vem a falecer no dia 19 de Julho de 1886.

Fonte Wikipedia

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Deslumbramentos
*
Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
*
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, senguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…
*
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
*
Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…
*
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
*
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!
*
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
*
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.
*
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
*
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
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Cesário Verde

2.26.2008

Testamento semântico


Relembrando Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva, poeta, escritor e ensaísta açoreano, nascido na Praia da Vitória a19 de Dezembro de 1901, falecido em Lisboa em 20 de Fevereiro de 1978, figura marcante de uma época conturbada da sociedade portuguesa.


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Outro Testamento

Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.
Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.
Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.
Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.
Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.
Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.
Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar.

Vitorino Nemésio

2.15.2008

Regresso


Após um largo e sabático período de ausência, por motivos que só as voltas da vida saberão explicar, regressam a este espaço as palavras dos poetas que sabem, e souberam, honrar a lingua de Camões. O conceito do blog manter-se-á, evoluindo eventualmente para outros conteúdos que não apenas a arte da escrita, expondo outras visões, quiçá mais mundanas, da criatividade humana.
Citando as belas palavras de Manuel Alegre, mais do que "a aventura de partir e de chegar", o regresso é apenas mais uma etapa da grande viagem que é a vida, ... de mistério em mistério.




Regresso

E contudo perdendo-te encontraste.
E nem deuses nem monstros nem tiranos
te puderam deter. A mim os oceanos.
E foste. E aproximaste.

Antes de ti o mar era mistério.
Tu mostraste que o mar era só mar.
Maior do que qualquer império
foi a aventura de partir e de chegar.

Mas já no mar quem fomos é estrangeiro
e já em Portugal estrangeiros somos.
Se em cada um de nós há ainda um marinheiro
vamos achar em Portugal quem nunca fomos.

De Calicute até Lisboa sobre o sal
e o Tempo. Porque é tempo de voltar
e de voltando achar em Portugal
esse país que se perdeu de mar em mar.


Manuel Alegre