100 MYTOS

3.02.2008

Vergílio Ferreira


Filho de António Augusto Ferreira e Josefa Ferreira. Em 1920, os pais de Vergílio Ferreira emigram para os Estados Unidos, deixando-o, com seus irmãos, ao cuidado de suas tias maternas. Esta dolorosa separação é descrita em Nitido Nulo. A neve - que virá a ser um dos elementos fundamentais do seu imaginário romanesco é o pano de fundo da infância e adolescência passadas na zona da Serra da Estrela. Aos 10 anos, após uma peregrinação a Lourdes, entra no seminário do Fundão, que frequentará durante seis anos. Esta vivência será o tema central de Manhã Submersa.
Em 1932, deixa o seminário e acaba o Curso Liceal no Liceu da Guarda. Começa a dedicar-se à poesia. Entra para a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, continuando a dedicar-se à poesia, nunca publicada, salvo alguns versos lembrados em Conta-Corrente e, em 1939, escreve o seu primeiro romance, O Caminho Fica Longe. Licenciou-se em Filologia Clássica em 1940. Conclui o Estágio no Liceu D.João III (1942), em Coimbra. Começa a leccionar em Faro. Publica o ensaio "Teria Camões lido Platão?" e, durante as férias, em Melo, escreve "Onde Tudo Foi Morrendo". Em 1944, passa a leccionar no Liceu de Bragança, publica "Onde Tudo Foi Morrendo" e escreve "Vagão "J"". Vergílio Ferreira morre em Lisboa, a 1 de Março de 1966 e é sepultado em Melo.

Fonte Wikipédia
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Nítido nulo
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AGORA a praia está deserta. Os últimos banhistas subiram a longa escadaria, desapareceram há dias atrás da falésia. E estranha, uma melancolia cresce como erva, deixa um rasto nas coisas. Memória do que morreu, subtil, do que vibrou – e a indiferença da terra, da luz. Do mar. Ou talvez que tudo nasça da certeza do meu fim. Condenado à morte – quando me executarão? – estou aqui à espera nesta prisão junto à praia. Na realidade, não é uma prisão – um posto da guarda? No extremo da baía há um fortim, meteram-me aí. A sala é larga e limpa. As próprias grades são pintadas de branco para deixarem passar a alegria que puderem. Decerto entendeu-se que sofria mais assim. Ou quiseram homenagear-me? Porque lá fora glorificam-me ou àquela parte de mim que lhes convém e incluiram no seu álbum de família. Um condenado, aliás, homenageia-se sempre. Mesmo que se lhe cuspa na cara – mas é difícil explicar agora. É uma forma plausível de o afastarmos de nós e à imagem que vem nele da nossa própria morte. Ou uma forma prévia de se aplacar o remorso. Sou em breve em mim o nada deles amanhã, cobrem-me de gulodice, é assim. Todas as vontades, todos os caprichos – quando me executarão? E no entanto, esta mesma incerteza, esta possibilidade de que daqui a um mês, daqui a um minuto. Estou calmo. Ou não? Estou calmo. A vida existe. O sol. Realizei o meu destino até onde me falava – que é que pode sofrer em mim? Sento-me às grades, olho. A areia branca estende-se até quase a perder de vista, os meus olhos tremem à luz. Luz suspensa, brilha no ar. Sinto-a nas pupilas como pequenos estalidos. Ao longo da praia o mar bate na areia em breves ondas de espuma. É um mar de brinquedo e as crianças sabem-no. Metem-se com ele como com um cão velho, ele deixa – de quando estou a falar? Os últimos banhistas desapareceram atrás das arribas, agora estou só. Atrás de mim está um guarda. Vejo-o oblìquamente, vejo-o só de pensar nele, está imóvel junto da porta – que estará pensando? Tem ordens terminantes para me obedecer em tudo, fiscalizar em tudo. Instantâneo, coordena-se ao mais breve gesto meu, a um movimento, palavra. Mas não me movo, estou calado. Estendo é os olhos pela praia até os desfazer na neblina, que está ao fundo, e nas grandes rochas que avultam dentro dela e fecham a baía. Sùbitamente despovoada, ficou-me dela o eco da excitação, da alegria marítima. Estou cheio ainda da memória dos banhistas, que é sobretudo delas, memória difícil. Corpos de mulheres. Fecundo terno violento – um corpo. E a dificuldade das noites. Depois, o silêncio a toda a extensão da areia, alguns bancos, a estacaria dos toldos ao sol, é o fim da estação.
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Excerto da obra “Nítido nulo” de Vergílio Ferreira