100 MYTOS

3.02.2008

Vergílio Ferreira


Filho de António Augusto Ferreira e Josefa Ferreira. Em 1920, os pais de Vergílio Ferreira emigram para os Estados Unidos, deixando-o, com seus irmãos, ao cuidado de suas tias maternas. Esta dolorosa separação é descrita em Nitido Nulo. A neve - que virá a ser um dos elementos fundamentais do seu imaginário romanesco é o pano de fundo da infância e adolescência passadas na zona da Serra da Estrela. Aos 10 anos, após uma peregrinação a Lourdes, entra no seminário do Fundão, que frequentará durante seis anos. Esta vivência será o tema central de Manhã Submersa.
Em 1932, deixa o seminário e acaba o Curso Liceal no Liceu da Guarda. Começa a dedicar-se à poesia. Entra para a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, continuando a dedicar-se à poesia, nunca publicada, salvo alguns versos lembrados em Conta-Corrente e, em 1939, escreve o seu primeiro romance, O Caminho Fica Longe. Licenciou-se em Filologia Clássica em 1940. Conclui o Estágio no Liceu D.João III (1942), em Coimbra. Começa a leccionar em Faro. Publica o ensaio "Teria Camões lido Platão?" e, durante as férias, em Melo, escreve "Onde Tudo Foi Morrendo". Em 1944, passa a leccionar no Liceu de Bragança, publica "Onde Tudo Foi Morrendo" e escreve "Vagão "J"". Vergílio Ferreira morre em Lisboa, a 1 de Março de 1966 e é sepultado em Melo.

Fonte Wikipédia
**
Nítido nulo
[...]
AGORA a praia está deserta. Os últimos banhistas subiram a longa escadaria, desapareceram há dias atrás da falésia. E estranha, uma melancolia cresce como erva, deixa um rasto nas coisas. Memória do que morreu, subtil, do que vibrou – e a indiferença da terra, da luz. Do mar. Ou talvez que tudo nasça da certeza do meu fim. Condenado à morte – quando me executarão? – estou aqui à espera nesta prisão junto à praia. Na realidade, não é uma prisão – um posto da guarda? No extremo da baía há um fortim, meteram-me aí. A sala é larga e limpa. As próprias grades são pintadas de branco para deixarem passar a alegria que puderem. Decerto entendeu-se que sofria mais assim. Ou quiseram homenagear-me? Porque lá fora glorificam-me ou àquela parte de mim que lhes convém e incluiram no seu álbum de família. Um condenado, aliás, homenageia-se sempre. Mesmo que se lhe cuspa na cara – mas é difícil explicar agora. É uma forma plausível de o afastarmos de nós e à imagem que vem nele da nossa própria morte. Ou uma forma prévia de se aplacar o remorso. Sou em breve em mim o nada deles amanhã, cobrem-me de gulodice, é assim. Todas as vontades, todos os caprichos – quando me executarão? E no entanto, esta mesma incerteza, esta possibilidade de que daqui a um mês, daqui a um minuto. Estou calmo. Ou não? Estou calmo. A vida existe. O sol. Realizei o meu destino até onde me falava – que é que pode sofrer em mim? Sento-me às grades, olho. A areia branca estende-se até quase a perder de vista, os meus olhos tremem à luz. Luz suspensa, brilha no ar. Sinto-a nas pupilas como pequenos estalidos. Ao longo da praia o mar bate na areia em breves ondas de espuma. É um mar de brinquedo e as crianças sabem-no. Metem-se com ele como com um cão velho, ele deixa – de quando estou a falar? Os últimos banhistas desapareceram atrás das arribas, agora estou só. Atrás de mim está um guarda. Vejo-o oblìquamente, vejo-o só de pensar nele, está imóvel junto da porta – que estará pensando? Tem ordens terminantes para me obedecer em tudo, fiscalizar em tudo. Instantâneo, coordena-se ao mais breve gesto meu, a um movimento, palavra. Mas não me movo, estou calado. Estendo é os olhos pela praia até os desfazer na neblina, que está ao fundo, e nas grandes rochas que avultam dentro dela e fecham a baía. Sùbitamente despovoada, ficou-me dela o eco da excitação, da alegria marítima. Estou cheio ainda da memória dos banhistas, que é sobretudo delas, memória difícil. Corpos de mulheres. Fecundo terno violento – um corpo. E a dificuldade das noites. Depois, o silêncio a toda a extensão da areia, alguns bancos, a estacaria dos toldos ao sol, é o fim da estação.
[...]

Excerto da obra “Nítido nulo” de Vergílio Ferreira

2.29.2008

Cesário


Em 25 de Fevereiro de 1855 nascia em Lisboa o poeta Cesário Verde. Filho do lavrador e comerciante José Anastácio Verde e de Maria da Piedade dos Santos Verde, Cesário matriculou-se no Curso Superior de Letras em 1873, frequentando por apenas alguns meses o curso de Letras. Ali conheceu Silva Pinto, grande amigo pelo resto da vida. Dividia-se entre a produção de poesias (publicadas em jornais) e as actividades de comerciante, herdadas do pai.
Em 1877 lhe começou a dar sinais a tuberculose, doença que já lhe tirara o irmão e a irmã. Estas mortes servem de inspiração a um de seus principais poemas, Nós.
De poesia delicada, Cesário empregou técnicas impressionistas, com extrema sensibilidade ao retratar a Cidade e o Campo, seus cenários prediletos. Evitou o lirismo tradicional, expressando da forma mais natural possível.
As duras condições de trabalho, o sofrimento (doença; pobreza; humilhação) a que estão condenados os mais fracos, a par da exaltação da energia do povo trabalhador e da condenação do egoísmo e frieza dos poderosos, são questões que estão presentes na poesia de Cesário Verde foi o primeiro poeta homossexual português assumido.
Para Cesário Verde ver é perceber o que se esconde na realidade, é captar as impressões que as coisas lhe deixam e, por isso, percepciona o real minuciosamente através dos sentidos e reflete essa mesma impressão que o exterior deixa no interior do sujeito poético. Ou seja, o real exterior é apreendido pelo mundo interior que o interpreta e recria com grande nitidez, numa atitude de captação de real pelos sentidos, com predominância dos dados da visão: a cor, a luz, o recorte e o movimento.
Cesário Verde tenta curar-se da tuberculose, sem sucesso; vem a falecer no dia 19 de Julho de 1886.

Fonte Wikipedia

***

Deslumbramentos
*
Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
*
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, senguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!…
*
Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!
*
Ah! Como me estonteia e me fascina…
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!…
*
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
*
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!
*
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
*
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.
*
Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
*
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
**
Cesário Verde

2.26.2008

Testamento semântico


Relembrando Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva, poeta, escritor e ensaísta açoreano, nascido na Praia da Vitória a19 de Dezembro de 1901, falecido em Lisboa em 20 de Fevereiro de 1978, figura marcante de uma época conturbada da sociedade portuguesa.


***

Outro Testamento

Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.
Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.
Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.
Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.
Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.
Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.
Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar.

Vitorino Nemésio

2.15.2008

Regresso


Após um largo e sabático período de ausência, por motivos que só as voltas da vida saberão explicar, regressam a este espaço as palavras dos poetas que sabem, e souberam, honrar a lingua de Camões. O conceito do blog manter-se-á, evoluindo eventualmente para outros conteúdos que não apenas a arte da escrita, expondo outras visões, quiçá mais mundanas, da criatividade humana.
Citando as belas palavras de Manuel Alegre, mais do que "a aventura de partir e de chegar", o regresso é apenas mais uma etapa da grande viagem que é a vida, ... de mistério em mistério.




Regresso

E contudo perdendo-te encontraste.
E nem deuses nem monstros nem tiranos
te puderam deter. A mim os oceanos.
E foste. E aproximaste.

Antes de ti o mar era mistério.
Tu mostraste que o mar era só mar.
Maior do que qualquer império
foi a aventura de partir e de chegar.

Mas já no mar quem fomos é estrangeiro
e já em Portugal estrangeiros somos.
Se em cada um de nós há ainda um marinheiro
vamos achar em Portugal quem nunca fomos.

De Calicute até Lisboa sobre o sal
e o Tempo. Porque é tempo de voltar
e de voltando achar em Portugal
esse país que se perdeu de mar em mar.


Manuel Alegre

10.10.2006

Luís Veiga Leitão



Corredor


Cem metros à sombra — temperatura
de tantos corpos e almas em rodagem.
Neste muro cercado, a maior viagem
sob um céu de pedra escura.


Sombras em fila, espectros talvez,
desplantam ecos da raiz do chão.
Lembram comboios que vêm e vão
sob túneis de pez.


E vêm e vão com pés humanos
ressoando movimentos tardos,
levando fardos, trazendo fardos
das horas sem dias e meses sem anos.


E vêm e vão, sempre, sempre a rodar
na linha dos railes espectrais,
sem descarregadores na gare,
sem guindastes no cais.


E vêm e vão pela via larga
das redes do sonho e da lembrança,
levando a carga, trazendo a carga
de toneladas de esperança.

Luís Veiga Leitão

Luís Veiga Leitão, pseudónio literário de Luís Maria Leitão, nascido em Moimenta da Beira a 27 de Maio de 1912, fez parte da segunda vaga do neo-realismo português. Foi colaborador das revistas Seara Nova e Vértice. Faleceu em Niteiró, Brasil, a 10 de Outubro de 1987. A poesia completa de Luís Veiga Leitão foi publicada pelas Edições Asa.

10.08.2006

Música de Fim de Semana



Apalpa um violino

Apalpa um violino
com teus dentes.
Corrige a corriqueira
soma dos acordes.
Medicamenta o mundo.Ó bruxo semanal
com teus abutres, teu mocho
dado à gula dos mistérios,
quem paga esta consulta?
quem sobe, arfando, os degraus
da febre? Teu beijo muge
a tua boca sangra
o teu pescoço azul
desponta no meu peito.A esta hora exacta
os deuses
parem
em lugares recônditos.
Seus ovos lentos
crescem
no coração dos tontos.Refreias toda a fala
sustenida
e os campos taciturnos
nem se movem.

Ó mago indolente
entre os meus dedos. Cabrito pouco astuto
em devaneios. Os animais famintos
Com seu crespo ondular
Percorrem-te os inventos,
E nós,
Os instrumentos.

A rede musicada
Das tuas mãos de merda.

Armando Silva Carvalho
"Os Ovos de Ouro

10.05.2006

Pátria


Pátria
PORTUGAL

Maior do que nós, simples mortais, este gigante
foi da glória dum povo o semideus radiante.
Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado,
seu torrão dilatou, inóspito montado,
numa pátria... E que pátria! A mais formosa e linda
que ondas do mar e luz do luar viram ainda!
Campos claros de milho moço e trigo loiro;
hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro;
trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas;
nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas;
gados nédios; colinas brancas olorosas;
cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas;
selvas fundas, nevados píncaros, outeiros
de olivais; por nogais, frautas de pegureiros;
rios, noras gemendo, azenhas nas levadas;
eiras de sonho, grutas de génios e de fadas:
riso, abundância, amor, concórdia, Juventude:
e entre a harmonia virgiliana um povo rude,
um povo montanhês e heróico à beira-mar,
sob a graça de Deus a cantar e a lavrar!
Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias
conchegadinhas sempre ao torreão de ameias.
Cada vila um castelo. As cidades defesas
por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas;
e, a dar fé, a dar vigor, a dar o alento,
grimpas de catedrais, zimbórios de convento,
campanários de igreja humilde,erguendo à luz,
num abraço infinito, os dois braços da cruz!
E ele, o herói imortal duma empresa tamanha,
em seu tuguriozinho alegre na montanha
simples vivia ? paz grandiosa, augusta e mansa! -,
sob o burel o arnês, junto do arado a lança.
Ao pálido esplendor do ocaso na arribana,
di-lo-íeis, sentado à porta da choupana,
ermitão misterioso, extático vidente,
olhos no mar, a olhar sonambolicamente...
«Águas sem fim! Ondas sem fim! Que mundos novos
de estranhas plantas e animais, de estranhos povos,
ilhas verdes além... para além dessa bruma,
diademadas de aurora, embaladas de espuma!
Oh, quem fora, através de ventos e procelas,
numa barca ligeira, ao vento abrindo as velas,
a demandar as ilhas de oiro fulgurantes,
onde sonham anões, onde vivem gigantes,
onde há topázios e esmeraldas a granel,
noites de Olimpo e beijos de âmbar e de mel!»
E cismava, e cismava... As nuvens eram frotas,
navegando em silêncio a paragens ignotas...
? «Ir com elas...Fugir...Fugir!...» Uma manhã,
louco, machado em punho, a golpes de titã,
abateu, impiedoso, o roble familiar,
há mil anos guardando o colmo do seu lar.
Fez do tronco num dia uma barca veleira,
um anjo à proa, a cruz de Cristo na bandeira...
Manhã de heróis... levantou ferro... e, visionário,
sobre as águas de Deus foi cumprir seu fadário.
Multidões acudindo ululavam de espanto.
Velhos de barbas centenárias, rosto em pranto,
braços hirtos de dor, chamavam-no... Jamais!
Não voltaria mais! Oh! Jamais! Nunca mais!
E a barquinha, galgando a vastidão imensa,
ia como encantada e levada suspensa
para a quimera astral, a músicas de Orfeus:
o seu rumo era a luz; seu piloto era Deus!
Anos depois, volvia à mesma praia enfim
uma galera de oiro e ébano e marfim,
atulhando, a estoirar, o profundo porão
diamantes de Golconda e rubins de Ceilão!
Guerra Junqueiro
Pátria (Excertos)
de
Projecto Vercial
Comemorando os 96 da implatação da República em Portugal
Abílio de Guerra Junqueiro (1850-1923) nasceu em Freixo de Espada à Cinta, formando-se em Direito na Universidade de Coimbra. Foi funcionário público e deputado, aderindo em 1891, com o Ultimatum inglês, aos ideais republicanos. Influenciado por Baudelaire, Proudhon, Victor Hugo e Michelet, iniciou uma intensa escrita poética com o fim último de, pela crítica, renovar a sociedade portuguesa. Retirou-se para uma quinta no Douro, regressando à política com a implantação da República, tendo sido nomeado Ministro de Portugal em Berna.

10.03.2006

Semelhança segundo Pascoaes


Semelhança
I

É ser quase invisível ser presente.
Na distância é que os astros aparecem;
E nas profundas trevas sepulcrais
É que podemos ver
Esta figura humana da Tragédia,
Esta máscara grega que faz medo
Aos deuses e aos demónios! Esta imagem
Acendida de cores palpitantes,
Além das quais se escondem num tumulto,
Outras vagas imagens, pretendendo
Vencer e dominar, romper a névoa,
Surgir à luz do dia!
Só nas trevas,
Se ilumina a expressão das criaturas,
Como um céu nocturno, Ó lua nova,
O teu perfil de prata que me lembra
O perfil de Virgílio a revelar-se
Na morta escuridão de dois mil anos.
É nas trevas que as almas aparecem.
E a sua face externa, dimanando
Este ar humano a arder em luz divina
Ou toldado de fumo enegrecido:
O relevo mais alto
Dum rosto que se anima, aquele traço
Que melhor o define, aquele modo
De olhar e de falar, aquele riso
Ou de anjo ou de demónio;
Este ar inconfundível e perpétuo
Que trouxemos do ventre maternal.
Fulgura na beleza amanhecente
E conserva acendida, entre as ruínas
Da trágica velhice,
A monótona lâmpada soturna,
Em melancólicos lampejos frios.
E inalterável paira sobre a face
Gelada dos cadáveres.. .
E dela se desprende; e, já liberto,
Em vulto de fantasma,
Fica, por todo o sempre, a divagar
Entre o luar e a noite, o Céu e a Terra.
II
O génio dum pintor
É dar as cousas como Deus as fez
E como Deus, sonhando, as concebeu,
Bem antes de as criar. É dar o sol
E a sombra original que lhe embrandece
O ímpeto doirado a desfazer-se,
Em luminosa espuma, sobre o mundo.
É dar a um rosto humano a forma viva,
A claridade viva que ele trouxe
Do ventre maternal...
Esta anímica luz de simpatia
Que se exala, no ar, e vem de dentro
Dum coração a arder:
A nossa própria imagem condensando,
Através da aparência transitória,
A eterna aparição.
III
A tinta dá a aparência deslumbrante,
A luz carnal que veste os ossos do esqueleto
E em nós acende uma ilusão de vida,
Um desejo de ser quase infinito,
Um sonho de existir eternamente...
Este sonho divino que nos leva
Nas suas ígneas asas sempre abertas
No coração da noite.
Para onde vamos nós? Para onde vai
A perfeita alegria que se apaga,
E nos deixa na alma
Como um sabor a cinza?
E no silêncio que vem da serra com a lua
E passeia comigo no jardim?
E o perfume das rosas e dos lírios
Que derramam, na sombra, bem se vê,
Fosforescências brancas e vermelhas,
Quando o luar é mármore desfeito
A cair, a cair, em luminoso pó?
Cai na terra que tem defunta palidez,
Sorrisos mortos, lágrimas de neve,
Pedrinhas preciosas que cintilam
E negras manchas de terror, fingindo
O recorte das árvores extáticas.
A tinta dá a aparência radiosa;
Um arco-íris nas paletas,
E a alegria da virgem Primavera
E o sangue que ilumina a tua face
E é como a aurora a percorrer-te as veias
E dos teus lábios foge, num sorriso...
Mas o carvão dá a noite, a intimidade, a alma,
Os recantos escuros da paisagem,
Onde o mistério e a sombra
Parecem adquirir uma presença vaga...
E extrai do alvor luarento do papel
O fantasma escondido, em nós, durante a vida,
Mas cá fora, ao luar, depois da nossa morte.
O óleo diurno lança num perfil
Todo o esplendor externo da expressão,
Este ar espiritual de etérea luz,
Que, emanando de dentro, se condensa
Em relevos de carne e sangue quente,
Donde se exala a dor em turbilhões de fumo
E a alegria agitando as luminosas asas.
Mas o carvão nocturno esboça a medo
A nossa intimidade, aquela imagem
Que em nosso coração se esconde e em certas horas,
De alto delírio e exaltação profunda,
Aparece, na Terra, em nosso nome,
Como um anjo de luz, como um demónio a arder!
Caim e Abel! Orfeu tangendo lira!
O grito de Jesus nas trevas do Calvário!
Lucrécio enlouquecido a escorraçar os Deuses
Para os confins do Olimpo...
E estrela do pastor que, à tarde, cintilava
Nos olhos de Virgílio, extáticas lagoas
Que reflectem a lua entre folhagens de árvore
E misteriosos perfis de espectros agoirentos.
Um retrato a carvão faz medo. Mostra à luz
Aquela negra sombra pavorosa
Que emite, para dentro, a criatura humana,
A fim de que ninguém a possa contemplar.. .
O segredo mais trágico das almas
A converter-se numa voz terrível,
Como um grito da Esfinge, no Deserto,
Que fizesse tremer o vulto das Pirâmides
E violentasse a tampa dos sepulcros,
Onde jazem os Deuses primitivos
E os primitivos Monstros que os poetas
E as entranhas da Terra conceberam.
Mas um retrato a óleo
É máscara pintada a tintas animadas,
Tão sensível de luz e de ternura
Que parece evolar-se num sorriso
E noutras claridades.
IV
O pintor surpreende a alma e o corpo,
A aparência da vida, a aparição da morte,
Mas não consegue dar o espírito divino,
O que somos além da morte e além da vida.
Só poderiam dar a imagem verdadeira
Do espírito divino as tintas milagrosas
Extraídas daquele sol eterno
Que faz desabrochar as almas e as estrelas...
Daquele sol oculto em certos versos,
Nas palavras de Paulo e de Jesus,
Nos gritos de aflição, do amor e da saudade
Que, junto dum sepulcro ou berço consagrado,
Lançam as mães aos ventos do Infinito!
Somente em certos versos misteriosos
Dos grandes Poetas, brilha aquele sol
Que faz desabrochar as almas e as estrelas.

Teixeira de Pascoaes
Cânticos
1925
Poesia de Teixeira de Pascoaes
Antologia organizada por Mário Cesariny
Assírio & Alvim

10.01.2006

Insubmisso























Saudação a Walt Whitman

Portugal Infinito, onze de junho de mil novecentos e quinze...
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!

De aqui de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,
Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela Rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a Rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.

Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a adversidade das coisas,
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,
Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!

Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande democrata epidérmico, contágio a tudo em corpo e alma,
Carnaval de todas as ações, bacanal de todos os propósitos,
Irmão gêmeo de todos os arrancos,
Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquinas,
Homero do insaisissable de flutuante carnal,
Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,
Milton-Shelley do horizonte da Eletricidade futura! incubo de todos os gestos
Espasmo pra dentro de todos os objetos-força,
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares...

Quantas vezes eu beijo o teu retrato!
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)
Sentes isto, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente)
E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá —, Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito

Uma ereção abstrata e indireta no fundo da minha alma.

Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,
Mas perante o Universo a tua atitude era de mulher,
E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo.

Meu velho Walt, meu grande Camarada, evohé!
Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus sonhos,
Sou dos teus, olha pra mim, de aí desde Deus vês-me ao contrário:
De dentro para fora... Meu corpo é o que adivinhas, vês a minha alma —
Essa vês tu propriamente e através dos olhos dela o meu corpo —
Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro,
Poeta sensacionista,
Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,
Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!

Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali sentir demais...
Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a atividade humana e mecânica.
Nos teus ver sos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,

Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,
Ou de cabeça pra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,
No teto natural da tua inspiração de tropel,
No centro do teto da tua intensidade inacessível.

Abram-me todas as portas!
Por força que hei de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações...
Se for preciso meto dentro as portas...
Sim — eu, franzino e civilizado, meto dentro as portas,
Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,
E que há de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!
Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas emoções!
Daqui pra fora, políticos, literatos,
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.
O espírito que dá a vida neste momento sou EU!

Que nenhum filho da... se me atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo,
E comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito...
Pra frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,
Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com isso...
Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,
De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo,
De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,
De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,
De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem limite,
De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado,
Dança comigo, Walt, lá do outro mundo, esta fúria,
Salta comigo neste batuque que esbarra com os astros,
Cai comigo sem forças no chão,
Esbarra comigo tonto nas paredes,
Parte-te e esfrangalha-te comigo
Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,
Raiva abstrata do corpo fazendo maelstroms na alma...

Arre! Vamos lá pra frente!
Se o próprio Deus impede, vamos lá pra frente Não faz diferença
Vamos lá pra frente sem ser para parte nenhuma
Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?

(Deixa-me tirar a gravata e desabotoar o colarinho .
Não se pode ter muita energia com a civilização à roda do pescoço ...)
Agora, sim, partamos, vá lá pra frente.

Numa grande marche aux flabeux-todas-as-cidades-da-Europa,
Numa grande marcha guerreira a indústria, o comércio e ócio,
Numa grande corrida, numa grande subida, numa grande descida
Estrondeando, pulando, e tudo pulando comigo,
Salto a saudar-te,
Berro a saudar-te,
Desencadeio-me a saudar-te, aos pinotes, aos pinos, aos guinos!

Por isso é a ti que endereço
Meus versos saltos, meus versos pulos, meus versos espasmos
Os meus versos-ataques-histéricos,
Os meus versos que arrastam o carro dos meus nervos.

Aos trambolhões me inspiro,
Mal podendo respirar, ter-me de pé me exalto,
E os meus versos são eu não poder estoirar de viver.

Abram-me todas as janelas!
Arranquem-me todas as portas!
Puxem a casa toda para cima de mim!
Quero viver em liberdade no ar,
Quero ter gestos fora do meu corpo,
Quero correr como a chuva pelas paredes abaixo,
Quero ser pisado nas estradas largas como as pedras,
Quero ir, como as coisas pesadas, para o fundo dos mares,
Com uma voluptuosidade que já está longe de mim!

Não quero fechos nas portas!
Não quero fechaduras nos cofres!
Quero intercalar-me, imiscuir-me, ser levado,
Quero que me façam pertença doída de qualquer outro,
Que me despejem dos caixotes,
Que me atirem aos mares,
Que me vão buscar a casa com fins obscenos,
Só para não estar sempre aqui sentado e quieto,
Só para não estar simplesmente escrevendo estes versos!
Não quero intervalos no mundo!

Quero a contiguidade penetrada e material dos objetos!
Quero que os corpos físicos sejam uns dos outros como as almas,
Não só dinamicamente, mas estaticamente também!

Quero voar e cair de muito alto!
Ser arremessado como uma granada!
Ir parar a... Ser levado até...
Abstrato auge no fim cie mim e de tudo!

Clímax a ferro e motores!
Escadaria pela velocidade acima, sem degraus!
Bomba hidráulica desancorando-me as entranhas sentidas!

Ponham-me grilhetas só para eu as partir!
Só para eu as partir com os dentes, e que os dentes sangrem
Gozo masoquista, espasmódico a sangue, da vida!

Os marinheiros levaram-me preso,
As mãos apertaram-me no escuro,
Morri temporariamente de senti-lo,
Seguiu-se a minh'alma a lamber o chão do cárcere privado,
E a cega-rega das impossibilidades contornando o meu acinte.

Pula, salta, toma o freio nos dentes,
Pégaso-ferro-em-brasa das minhas ânsias inquietas,
Paradeiro indeciso do meu destino a motores!

He calls Walt:

Porta pra tudo!
Ponte pra tudo!
Estrada pra tudo!
Tua alma omnívora,
Tua alma ave, peixe, fera, homem, mulher,
Tua alma os dois onde estão dois,
Tua alma o um que são dois quando dois são um,
Tua alma seta, raio, espaço,
Amplexo, nexo, sexo, Texas, Carolina, New York,
Brooklyn Ferry à tarde,
Brooklyn Ferry das idas e dos regressos,
Libertad! Democracy! Século vinte ao longe!
PUM! pum! pum! pum! pum!
PUM!
Tu, o que eras, tu o que vias, tu o que ouvias,
O sujeito e o objecto, o activo e o passivo,
Aqui e ali, em toda a parte tu,
Círculo fechando todas as possibilidades de sentir,
Marco miliário de todas as coisas que podem ser,
Deus Termo de todos os objetos que se imaginem e és tu!
Tu Hora,
Tu Minuto,
Tu Segundo!
Tu intercalado, liberto, desfraldado, ido,
Intercalamento, libertação, ida, desfraldamento,
Tu intercalador, libertador, desfraldador, remetente,
Carimbo em todas as cartas,
Nome em todos os endereços,
Mercadoria entregue, devolvida, seguindo...
Comboio de sensações a alma-quilómetros à hora,
À hora, ao minuto, ao segundo, PUM!

Agora que estou quase na morte e vejo tudo já claro,
Grande Libertador, volto submisso a ti.

Sem dúvida teve um fim a minha personalidade.
Sem dúvida porque se exprimiu, quis dizer qualquer coisa
Mas hoje, olhando para trás, só uma ânsia me fica —
Não ter tido a tua calma superior a ti-próprio,
A tua libertação constelada de Noite Infinita.

Não tive talvez missão alguma na terra.

Heia que eu vou chamar
Ao privilégio ruidoso e ensurdecedor de saudar-te
Todo o formilhamento humano do Universo,
Todos os modos de todas as emoções
Todos os feitios de todos os pensamentos,
Todas as rodas, todos os volantes, todos os êmbolos da alma.
Heia que eu grito
E num cortejo de Mim até ti estardalhaçam
Com uma algaravia metafisica e real,
Com um chinfrim de coisas passado por dentro sem nexo.

Ave, salve, viva, ó grande bastardo de Apolo,
Amante impotente e fogoso das nove musas e das graças,
Funicular do Olimpo até nós e de nós ao Olimpo.


Álvaro de Campos

9.30.2006

A Alma de Pessoa





Fernando Pessoa

A razão poética

71 anos morria, em Lisboa, Fernando Pessoa, cuja obra, por sua complexidade e beleza, deu novo sentido e novo peso à literatura de língua portuguesa. Falar desse poeta e dessa obra equivale a mergulhar num atordoante labirinto de espelhos. O que é previsível, quando se lê o que ele mesmo disse em carta a João Gaspar Simões: "O estudo a meu respeito, que peca só por se basear, como verdadeiros, em dados que são falsos por eu, artisticamente, não saber senão mentir". Pode-se entender esse reparo como uma advertência, pertinente, aos críticos que costumam explicar a obra dos escritores por sua biografia. De fato, se em todo autor obra e vida de algum modo se entrelaçam ou se ligam, deve a crítica ter em conta que se trata de realidades diferentes, de linguagens diversas, que não se traduzem uma na outra. Sendo assim, o mesmo fato não terá igual significação na vida como na obra, ou seja, devemos ler a obra como obra e a vida como vida. Sem confundi-las.


No caso de Fernando Pessoa, porém, a dificuldade está na leitura da obra de um autor cuja vida parece se resumir à própria obra e que, ao mesmo tempo, põe em dúvida a cada momento a sua existência como gente e como autor da obra. Mas tampouco o faz de modo definido ou definitivo.


Assim abre diante de nós um labirinto de dúvidas e simulações:


"Se alguma vez sou coerente -diz ele-, é apenas como incoerência saída da incoerência"; ou então: "A origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação". Noutra ocasião afirma:


"Eu sou a sensação minha. Portanto, nem da minha própria existência estou certo".


Se nos detemos a analisar essa última frase, verificamos que ela é carente de lógica: se eu sou uma sensação minha, não posso ter dúvida quanto a minha existência, já que, para haver sensações, é necessário que haja alguém que as tenha. Trata-se, portanto, de um paradoxo. Mas a nossa lógica de pouco ou nada vale para contestar ou definir a alguém que, como Pessoa, nos responde: "O paradoxo não é meu. Sou eu".


E é verdade. Ou deve ser... talvez. Fernando Pessoa parece ter tido, desde sempre, enorme dificuldade em manter-se coerente.


Ele confessa: "Todos os meus escritos ficaram inacabados: sempre novos pensamentos se interpunham, associações de idéias extraordinárias e inexcludíveis, de término infinito". Há nele uma espécie de horror ao definido e ao definitivo: "Não posso evitar o ódio que têm meus pensamentos de ir até o fim: a respeito de uma simples coisa, surgem dez mil pensamentos e milhares de interassociações com esses dez mil pensamentos, e careço de vontade de eliminá-los ou detê-los, nem tampouco de reuni-los num pensamento central, onde os seus pormenores sem importância, mas associados, podem se perder. Introduzem-se em mim: não são pensamentos meus, mas pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho; não me sinto inspirado, deliro".

A coerência impossível.


Pode-se deduzir dessa confissão que a impossibilidade de se manter coerente decorre, em Fernando Pessoa, de um lado de sua inteligência extraordinariamente rica e sensível e, de outro, de uma fraqueza ou indecisão fundamental que o impede de eleger a linha mestra do raciocínio e expurgar tudo o que, por mais interessante ou brilhante que seja, não pertença a ela.


Outra hipótese seria a de que ele subestima a coerência lógica em favor do efeito emocional das idéias e porque encontra na própria incoerência uma expressão emocional ou um perverso prazer intelectual. Não se pode esquecer que, entre as múltiplas faces da personalidade de Pessoa, há sem dúvida a de um certo esnobismo intelectual, o esforço para fugir do comum. Ele o diz pela boca de Bernardo Soares, o "autor" do Livro do Desassossego: "Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-me. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou". Se se alega -como poderia fazê-lo o próprio Pessoa- que o que diz Soares, diz Soares, e não ele, Pessoa, podemos também lembrar-lhe outra de suas afirmações: "Só disfarçado é que sou eu". Definir Pessoa é como tentar fixar as imagens de um caleidoscópio em movimento.


Não obstante, nunca se pode descartar, no entendimento desse fenômeno -que se confunde com uma espécie de dispersão da personalidade-, causas verdadeiras, existenciais e até psíquicas, especialmente quando atentamos para afirmações como esta: "O caráter de minha mente é tal que odeio os começos e os fins das coisas, porque são pontos definidos. Aflige-me a idéia de que se descubra uma solução para os mais altos e mais nobres problemas de ciência e filosofia; horroriza-me a idéia de que uma coisa qualquer possa ser determinada por Deus ou pelo mundo.
Enlouquece-me a idéia de que as coisas mais momentosas possam realizar-se, de que os homens pudessem todos ser felizes um dia, de que se encontrasse uma solução para os males da sociedade".


E, após dizê-lo, adverte: "Contudo, não sou mau nem cruel; sou louco e isso dum modo difícil de conceber".


Não nos cabe aqui fazer o diagnóstico médico de Fernando Pessoa. Ele, sim, tenta fazê-lo numa carta a dois psiquiatras franceses, datada de 10 de junho de 1917, em que afirma: "Do ponto de vista psiquiátrico, sou um hístero-neurastênico, mas felizmente minha neuropsicose é bastante fraca". E aduz logo adiante: "Exceto nas coisas intelectuais, onde cheguei a conclusões que tenho como firmes, mudo de opinião dez vezes por dia; só tenho juízo assentado a respeito de coisas em que não haja possibilidade de emoção". E isso porque, segundo ele mesmo admite, "a emotividade excessiva perturba a vontade; a cerebralidade excessiva -a inteligência por demais apaixonada pela análise e pelo raciocínio- esmaga e amesquinha essa vontade que a emoção acaba de perturbar", e acrescenta: "Quero sempre fazer, ao mesmo tempo, três ou quatro coisas diferentes; mas no fundo não só não faço, mas não quero mesmo fazer nenhuma delas. A acção pesa sobre mim como uma danação: agir, para mim, é violentar-me".


Se Pessoa era ou não um "hístero-neurastênico", não importa aqui. No trecho citado, interessam-nos mais as referências à "cerebralidade excessiva -a inteligência por demais apaixonada pela análise e pelo raciocínio"- e à impossibilidade de agir. Esses dados podem explicar sua tendência a negar a realidade concreta do mundo objetivo, o estado de permanente desencanto diante da vida e da criação de personalidades fictícias nas quais projeta a vida que ele próprio não consegue viver.

Homossexualismo irrealizado


Mas há um outro dado a acrescentar a esse quebra-cabeças: o homossexualismo irrealizado de Fernando Pessoa. Mais uma vez recorremos a suas próprias palavras: "Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação -a inteligência e a vontade, que é a inteligência do impulso- são de homem". Adiante ele diz: "Reconheço sem ilusão a natureza do fenômeno. É uma inversão sexual fruste. Pára no espírito". Mas vejamos o que se segue: "Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou, não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar".


Esse texto deixa claro a drástica reprovação de Pessoa à prática do homossexualismo (que ele considera humilhante), assim como o temor de que, contra a sua vontade, esse impulso lhe descesse ao corpo e o submetesse. "Somos vários desta espécie, pela história abaixo'', afirma, referindo-se em seguida a Shakespeare e Rousseau, para sublimar seu receio "da descida ao corpo dessa inversão do espírito", "como nesses dois desceu". Seria descabido imaginar que, diante dessa ameaça, diante desse corpo que poderia a qualquer momento traí-lo, que Pessoa decidisse não viver, reduzir sua vida à vida da inteligência (sua parte masculina), e assim escapar à desgraçada possibilidade de tornar-se um homossexual? Não seria essa divisão interior -um homem e uma mulher na mesma pessoa- o início de sua despersonalização, da divisão do eu e ao mesmo tempo da invenção de outras personalidades, em lugar da sua própria, que lhe era, por pervertida, inaceitável? Por outro lado, a necessidade de ocultar esse impulso perverso não seria a primeira simulação que o levaria a tantas outras simulações?


Podemos responder sim ou não a essas hipóteses. Mas mesmo que respondamos sim, não esgotaríamos com isso o mistério da obra poética de Fernando Pessoa nem o enigma de sua personalidade, que dessa obra não se separa, porque, qualquer que seja a causa que determina o nascimento de seus poemas e a criação do seus heterônimos, a significação poética e o valor literário de sua obra pairam acima das explicações.


Não vamos, portanto, indagar agora pela origem de seus heterônimos, mas tentar compreender o que são eles. Num texto conhecido como ``Apresentação dos Heterônimos'' e que foi escrito como prefácio a uma projetada edição de suas obras, em 1930, possivelmente, Pessoa afirma: "O autor humano destes livros não conhece em si próprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente diferente do que ele é, embora parecido" (...) "Afirmar que esses homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela alma incorporadamente, não existem -não pode fazê-lo o autor destes livros; porque não sabe o que é existir, nem qual, Hamlet ou Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade."

O poeta dramático


Essa alusão a Shakespeare não é fortuita, por várias razões, mas especialmente porque Pessoa se entende como um "poeta dramático" e seus heterônimos como equivalentes a personagens teatrais. É bastante conhecido o trecho de sua carta a João Gaspar Simões em que ele se define como tal: "O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Vôo outro - eis tudo".


Em consequência disso, diz ele, "não há que buscar em qualquer deles (dos heterônimos) idéias ou sentimentos meus, pois que muitos deles exprimem idéias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler". Argumenta com o exemplo do poema oitavo do ``Guardador de Rebanhos'', "que escrevi com sobressalto e repugnância", afirma, ``pois que ali Caeiro usa de blasfêmia infantil e antiespiritualismo, quando nem uso de blasfêmia nem sou antiespiritualista". E acrescenta: "Alberto Caeiro, porém, como eu o concebi, é assim: assim tem pois ele que escrever, quer eu queira quer não, quer eu pense como ele ou não. Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de lady Macbeth, com o fundamento de que ele, poeta, nem era mulher nem, que se saiba, hístero-epilético, ou de lhe atribuir uma tendência alucinatória e uma ambição que não recua perante o crime. Se assim é das personagens fictícias de um drama, é igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é lícito, porque elas são fictícias e não porque estão num drama".


Acredito que, para melhor entendermos o fenômeno dos heterônimos, devemos examinar esta tese de Fernando Pessoa, na qual ele insiste repetidas vezes e a que confere indiscutível importância, a ponto de considerá-la a chave para o entendimento de toda a sua obra.


De meu ponto de vista, a explicação dos heterônimos -se eles são apenas pseudônimos de um único poeta que é Fernando Pessoa ou se são de fato poetas autônomos que ele criou do mesmo modo que um dramaturgo cria seus personagens- não alterará a avaliação qualitativa dos poemas a eles atribuídos, mas é impossível falar da obra poética de Pessoa, como um todo, ignorando a existência desses personagens-poeta.


A leitura, não apenas dos textos explicativos produzidos por ele, como dos poemas de Caeiro, Reis e Campos, deixa evidente a complexidade desse fenômeno e seu alcance profundo na personalidade literária e humana de Pessoa. Pode-se dizer mesmo que a sua obra poética tanto se constitui dos poemas todos que escreveu como igualmente desses personagens, que ele usa para ser outros ou que o usam para serem eles mesmos. Por isso, tentar entender que relação efetivamente existe entre Pessoa e seus heterônimos é tentar entendê-lo com criador literário.


Apesar da insistência de Pessoa em se definir como "poeta dramático" e afirmar que seus heterônimos equivalem a personagens teatrais, ponho em dúvida essa sua tese. Para justificar minha discordância, volto à celebre carta a João Gaspar Simões, já citada aqui. "Desde que o crítico fixe, porém, que sou essencialmente um poeta dramático, tem a chave da minha personalidade, no que pode interessá-lo a ele, ou a qualquer pessoa que não seja um psiquiatra, que, por hipótese, o crítico não tem que ser. Munido dessa chave, ele pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão. Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de sentir", escreve Pessoa, tentando com isso mostrar o mecanismo de sua criação como poeta dramático. Sucede que, a meu juízo, esse não é o mecanismo da criação dramatúrgica.

Vaga biografia


O dramaturgo parte de personagem já existente (na vida real ou na sua imaginação) ou parte de uma situação dramática. Seu objetivo não é transferir sentimentos para expressões alheias ao que sentiu, mas expressar as emoções implícitas nas mais distintas situações da vida e dar existência aos protagonistas desses dramas. Macbeth não é resultado de um momento de despersonalização de Shakespeare e sim da capacidade do dramaturgo de viver integralmente o personagem, tanto em seu caráter como na situação dramática em que ele se encontra. A criação dramatúrgica não implica a substituição do autor pelo personagem, já que este é, de certa forma, uma expressão da personalidade do autor, afirmação dele como dramaturgo. Isso não significa, porém, que o personagem não possua traços próprios e não goze de uma autonomia relativa. Macbeth é, antes de mais nada, um homem numa situação dramática. Por isso, o que ele diz é o que só ele pode dizer e naquele momento; ele ou alguém que tivesse o mesmo caráter e se encontrasse na mesma situação. Sublinho este ponto porque reside aí a diferença fundamental entre um personagem dramático e qualquer dos heterônimos de Pessoa. Os heterônimos têm uma vaga biografia e, quando "falam" (escrevem), não o fazem como produto de uma situação determinada, como ocorre com Hamlet ou Macbeth ou Júlio César.


Tomemos o exemplo de Macbeth que, acreditando numa falsa profecia, dera vazão a sua sede de poder e a seus instintos sanguinários, traindo, assassinando, oprimindo. Quando, afinal, odiado por todos, cercado pelos inimigos, percebe que a profecia falhou e sente que o mundo desmorona sobre sua cabeça, tem uma explosão de revolta: "A vida é uma história contada com som e fúria por um idiota, e sem sentido algum". Essa frase terrivelmente negativa só poderia brotar na mente de um personagem furioso como Macbeth e posto na situação desesperadora em que se encontra no final de sua história. Não se trata de uma reflexão teórica e genérica, mas de uma manifestação contingente, por isso mesmo dramática.


Certamente, para que Macbeth seja assim e diga o que diz, é também necessário que o dramaturgo seja Shakespeare e não Molière ou Racine. Mas quem fala ali é Macbeth, não é Shakespeare. Porque Macbeth existe como personagem de uma história, existe numa história, e age e pensa em função das situações com que se defronta, sua existência é muito mais palpável, mais consistente, do que a dos heterônimos, e sua independência, com respeito ao seu criador, também muito maior.


De fato, como o que se conhece da vida de Macbeth ou de Hamlet são situações-limite, cuja alta intensidade dramática as imprime a fogo em nossa memória, nós os conhecemos melhor do que a Shakespeare, de quem temos vagas referências biográficas.


Noutras palavras, o conhecimento que temos de Shakespeare não é dramático, é prosaico, biográfico, como o conhecimento que temos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. E desse modo os papéis se invertem: Fernando Pessoa está mais vivo em nossa mente que seus heterônimos, porque dele, sim, temos um conhecimento dramático. Ele -e não Caeiro, Reis ou Álvaro de Campos- é que é o personagem com história e drama. Ele é que, aos cinco anos perde o pai, seis meses depois perde o irmão e, em menos de dois anos, ganha um padastro; ele é que vê morrer a avó, louca, e teme ele próprio enlouquecer; ele é que, desde cedo, percebe que não consegue viver; ele é que se sente como inexistente, como uma passividade que quase nada pode, a não ser se multiplicar em personagens fictícios; ele é que, homossexual que não se aceita, desiste de qualquer vida sexual; ele é que conhece a solidão e o vazio; ele é que conhece "a amargura essencial desta vida estranha à vida humana -vida em que nada se passa, salvo na consciência dela" e que, por isso, inveja o homem comum, normal, "que sente cansaço em vez de tédio e que sofre em vez de supor que sofre". Pode-se questionar se Fernando Pessoa era um poeta dramático, como ele se definiu, mas um personagem dramático, isso ele o foi seguramente.

A matéria poética


Por aí se vê que um personagem não precisa ser fictício para ser dramático, nem é essa condição que lhe empresta dramaticidade. Tampouco necessita, o personagem fictício, fazer parte de uma peça teatral. Alfred Prufrock, do célebre poema da Eliot, é um personagem dramático, como observa Edmund Wilson, porque nos é apresentado em situação dramática. Não é um heterônimo, nada se sabe dele além do que se deduz da própria leitura do poema, que é a expressão mesma de sua dramaticidade, um homem que envelhece solitário e que nunca ousou nada na vida, além de suas tímidas e frustradas fantasias.


Vê-se portanto que a relação de um dramaturgo com seus personagens não é igual à de Fernando Pessoa com seus heterônimos, mesmo porque estes não são a rigor personagens dramáticos. Isso não significa, porém, que não haja diferença entre Pessoa e os heterônimos, que eles não existam enquanto personalidades fictícias por ele criadas ou sejam fruto de mero capricho do poeta.


Não, os heterônimos são expressão necessária da personalidade de Fernando Pessoa, talvez que inicialmente como consequência de uma tendência à mistificação ou à simulação, conforme ele mesmo admite, mas que mais tarde tornaram-se parte essencial de seu universo intelectual, de sua elaboração da matéria poética. A novidade que é a criação dos heterônimos -fenômeno único na história da literatura-, longe de resultar de uma originalidade buscada, nasce das características especiais da personalidade de Fernando Pessoa e mesmo do que se poderia designar como suas deficiências.


É por não ter nunca certeza de nada, é por desconfiar da existência do mundo material à sua volta, por não distinguir firmemente as fronteiras entre o percebido e o pensado, por lhe parecer tão real -ou irreal- o que pensa quanto o que percebe sensorialmente, enfim, por não se saber quem é nem quantos é nem mesmo se é, por tudo isso ele se projetou nesses personagens fictícios, que usam de sua mente e de seu corpo para existir ou, pelo menos, para pensar e escrever. Mas se pode dizer também que é ele que os usa para assim assumir de modo efetivo as diferentes possibilidades de entendimento e indagação da existência que se oferecem à sua vertiginosa e comovida lucidez. Pode-se ainda encarar esses heterônimos com uma busca de alternativa para a visão desencantada e sofrida que se apreende nos versos de Fernando Pessoa-ele-mesmo:

  • ``Com que ânsia tão raiva
  • Quero aquele outrora!
  • E eu era feliz? Não sei:
  • Fui-o outrora agora'' ou
  • ``Sol frio dos dias vãos
  • Cheios de lida e de calma,
  • Aquece ao menos as mãos
  • De quem não entras na alma!''
  • ou
  • ``Ditosos a quem acena
  • Um lenço de despedida!
  • São felizes: têm pena...
  • Eu sofro sem pena a vida''.


Esse sofrimento vazio, que não decorre das relações afetivas, das paixões e das perdas reais, esse sofrimento que dói mais por parecer fingimento que por parecer real, talvez encontre um consolo quando Pessoa se torna Alberto Caeiro e, na pele dele, vive uma vida menos doída. Como Caeiro, Pessoa aceita a realidade do mundo e se conforma com vê-la, sem se atormentar de indagações:

  • ``Creio no mundo como um malmequer
  • Porque o vejo. Mas não penso nele
  • Porque pensar é não compreender...
  • O mundo não se fez para pensarmos nele
  • (Pensar é estar doente dos olhos)
  • Mas para olharmos para ele e
  • estarmos de acordo
  • Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
  • Se falo na Natureza não é porque
  • saiba o que ela é,
  • Mas porque a amo, e amo-a por isso,
  • Porque quem ama não sabe o que ama
  • Nem sabe por que ama, nem o que é amar...''


Alberto Caeiro é, assim, a manifestação de uma opção filosófica implícita na negatividade da visão de Fernando Pessoa: a descrença na possibilidade de, pela razão, compreender-se o mundo. Mas, em lugar de tal verificação conduzir ao desencanto ou ao desespero, conduz, em Caeiro, à aceitação tácita da realidade. O mundo existe, está aí, basta senti-lo, uma vez que "há metafísica bastante em não pensar em nada", e mesmo porque não há o que indagar, já que :


Se Caeiro é a aceitação da vida sem pensar, Ricardo Reis é talvez a aceitação apesar do pensar. Para Caeiro, existir é um fato maravilhoso por si mesmo, e o mundo, que dispensa explicações, não terá tido nem começo nem terá fim, ou pelo menos não importa sabê-lo. Já Ricardo Reis sabe: sabe que o tempo passa e a vida é breve. Mas isso não o perturba:

  • "Mestre, são plácidas
  • Todas as horas
  • Que nós perdemos,
  • Se no perdê-las,
  • Qual numa jarra,
  • Nós pomos flores".


Mas os heterônimos, se são alternativas filosóficas, são também alternativas estilísticas, aliás, como coerente decorrência da visão de mundo que cada um deles esposa. Ricardo Reis -que intensificou e tornou "artisticamente ortodoxo o paganismo descoberto por Alberto Caeiro"- escreve com o distanciamento e a objetividade de um clássico, sendo ao mesmo tempo moderno na exploração consciente da linguagem como matéria semântica e sensorial:

  • "O rastro que das ervas moles
  • Ergue o pé findo, o eco que oco coa,
  • A sombra que se adumbra,
  • O branco que a nau larga -
  • Nem maior nem melhor deixa a alma às almas,
  • O ido aos indos. A lembrança esquece.
  • Mortos ainda morremos.
  • Lídia, somos só nossos".


Já Álvaro de Campos não tem nem a tranquilidade saudável de Caeiro nem a indiferença olímpica de Reis: ele é sôfrego, ávido e passional. O que mais pesa nele é a sensorialidade, mesmo a sensualidade, o corpo. Se não se ilude quanto à inutilidade de tudo, tampouco se nega à força da realidade que lhe faz vibrar os nervos:

  • "E há uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas.
  • Há uma orquestração no meu sangue de balbúrdia de crimes.
  • De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares.
  • Furibundamente, como um vendaval de calor pelo espírito
  • Nuvem de poeira quente anuviando a minha lucidez
  • E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias!".


Como Pessoa, ele não tolera as verdades definitivas:

  • "A razão de haver ser, de haver seres, de haver tudo,
  • Deve trazer uma loucura maior que os espaços
  • Entre as almas e entre as estrelas!
  • Não, não, a verdade não!''.
  • E nada de conclusões:
  • ``A única conclusão é morrer".

E por ser tão preso aos sentidos, ao corpo, é natural que nele se manifeste o lado feminino de Pessoa, que Pessoa, por temor, reprime:

  • "Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,
  • E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos
  • Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,
  • Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas
  • Todos os chamamentos obscenos de gestos e olhares
  • Batem em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.
  • Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,
  • E todos os pederastas - absolutamente todos (sem faltar nenhum)
  • Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!
  • (Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
  • Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)''.

Esse dado talvez faça de Álvaro de Campos um heterônimo mais perto de Pessoa que os outros, mais perto da pessoa de Pessoa. Mesmo porque, como o cidadão Fernando Pessoa - ao contrário de Caeiro e Ricardo Reis-, Álvaro de Campos é citadino, urbano, metropolitano, contemporâneo das usinas e da luz elétrica:

  • "A dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
  • Tenho febre escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto.
  • Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos".


Por isso, estilisticamente, ele é "moderno", "futurista", entusiasmado com as novidades da civilização industrial, como um discípulo de Marinetti, que introduz na linguagem poética as palavras desse admirável mundo novo. Louva o cheiro fresco da tinta de tipografia, os cartazes colados há pouco, ainda molhados, os ``vients-de-paraître'' amarelos com uma cinta branca, a telegrafia sem fio, os túneis, o canal do Pananá, o canal de Suez... Álvaro de Campos guia automóvel e faz disso matéria de poema. Nem Caeiro nem Reis seriam capazes de semelhante proeza.


Voltemos à questão do relacionamento de Fernando Pessoa com seus heterônimos. Se esse relacionamento não é o mesmo que o dramaturgo mantém com seus personagens — e estou convencido de que não é —, o surgimento dos heterônimos não foi motivado pela necessidade (própria dos dramaturgos) de dar carne e realidade a personagens e situações. De fato, eles apareceram numa espécie de manifestação mediúnica, conforme conta o próprio poeta:


"Médium, assim, de mim mesmo todavia subsisto. Sou, porém, menos real que os outros, menos coeso (?), menos pessoal, eminentemente influenciável por eles todos. Sou também discípulo de Caeiro, e ainda me lembro do dia —l3 de março de 1914—, quando, tendo 'ouvido pela primeira vez' (isto é, tendo acabado de escrever, de um só hausto do espírito) grande número dos primeiros poemas do 'Guardador de Rebanhos', imediatamente escrevi, a fio, os seis poemas-intersecções que compõem a 'Chuva Oblíqua' ('Orpheu 2'), manifesto e lógico resultado da influência de Caeiro sobre o temperamento de Fernando Pessoa".

Mesma alma e mesmo corpo


Por não terem nascido de situações dramáticas, alheias à vida do autor ou tomadas objetivamente como tais, como a maioria das criações dramatúrgicas, os heterônimos não se desligam de Fernando Pessoa, já que é nele, e não em alguma peça teatral, que eles existem. Não é próprio da criação teatral esse coabitar dos personagens com o autor na mesma alma e no mesmo corpo, senão durante a concepção da peça. Escrita a peça, os personagens —esses fantasmas— abandonam o autor e se transferem para o texto escrito. O autor, por assim dizer, realiza desse modo um exorcismo: livra-se deles.


Os heterônimos, no entanto, jamais abandonam Pessoa, jamais se transferem para seus poemas que, por não serem peças teatrais, não os cabem, não têm neles suas situações de vida. Noutras palavras: os poemas são obras escritas pelos heterônimos e não o lugar em que transcorre sua vida. Eles não habitam os poemas, porque ninguém habita poemas. Eles habitam Fernando Pessoa. Convivem com eles, discutem com ele, misturam sua voz à dele, o influenciam. São portanto parte de Fernando Pessoa e compõem a sua personalidade contraditória e multiforme. Que Pessoa projeta e realiza neles tendências e qualidades pessoais está dito na carta de 13 de janeiro de 1935 a Adolfo Casais Monteiro. Pessoa escreve: "E contudo —penso-o com tristeza— pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida".

Ocultismo e visão olímpica


Nada nos autoriza, porém, a afirmar que os heterônimos "são" Fernando Pessoa, uma vez que ele pensa diferente deles1 e, em certas questões, o contrário deles. Dou como exemplo a carta a Marinetti, datada de 1917, em que ele diz que os sentidos só buscam "a razão física, exterior, superficial e empírica", e não a razão metafísica, "que só se descobre pelo pensamento puro, numa pureza inteiramente emocional", Com essas afirmações, Pessoa nega de uma única assentada tanto a visão de Caeiro ("pensar é não compreender") como a de Álvaro de Campos, cujo sistema está "baseado inteiramente nas sensações".


A adesão de Pessoa ao ocultismo contradiz inteiramente a visão olímpica de Ricardo Reis, como também a de Álvaro de Campos —voltado para o dinamismo da vida moderna— e a de Caeiro, para quem "o único sentido íntimo das coisas/ é elas não terem sentido íntimo nenhum". Outras tantas divergências entre Pessoa e seus heterônimos estão nas suas respectivas estatisticas.


Diante dessas constatações cabe perguntar: se os heterônimos não são expressão de situações existenciais específicas, dramáticas; se, portanto, não expressam visões contingentes ou geradas por situações próprias a eles (como Macbeth ou Hamlet) e, ao mesmo tempo, não expressam a visão de Fernando Pessoa, então por que eles os criou? Para contradizer-se? Para, por intermédio deles, manifestar suas contradições sem ter que assumi-las ou negá-las? Se não é por nenhuma dessas hipóteses, talvez reste apenas uma: ele os criou por razões poéticas e não por razões filosóficas; por razões afetivas, emocionais, e não por razões lógicas. Criou-os para exercer as múltiplas virtualidades de seu talento, que mal cabia numa só pessoa. E, por isso, talvez, mais correto séria chamá-lo —desculpem o trocadilho irresistível— Fernando Pessoas.

Ferreira Gullar é poeta e ensaísta, autor de "Luta Corporal" e "Poema Sujo", entre outros.

Ensaio publicado em http://www.revista.agulha.nom.br/gular04.html

Fernando Pessoa nasceu a 13 de Junho de 1888 e morreu em 30 de Novembro de 1935.

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edit: Agradecimento a Jorge P.G. pela correcção na data da morte de Fernando Pessoa

9.29.2006

Natália Correia



jornal Público


Auto-retrato


Espáduas brancas palpitantes:
asas no exilio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.


De alma aberta


Tomai-me as ancas fartas dão para égua
e as açucenas que ainda são mamudas.
Dos olhos tomai pranto, é boa rega,
já que a chorar por vós vos dei fartura.


Dos ouvidos, silvos que os ocuparam
tomai que até farelo pus em música.
Calo a farinha. Anjos a trituraram.
De agro celeste, o grão não mói a Musa.


De árduos sentidos que chamais pecados
tomai só os mortais. Dão uma récua.
Dos imortais nem um que são velados
por vapores de alvorada paraclética.


Tomai riso também se quereis folia:
mete rabeca e balho o Sprito Santo.
Nos fúlgidos milagres da pombinha
embuça-se o divino no profano.


Tomai polme a ferver de ilhoa irada,
mesmo o coice que dá depois de morta.
Eu deito fogo para não ser queimada.
Mas serva e cerva sou por trás da porta.


Tomai gestos que são dos sete palmos
e para vermes eu não ponho a rubrica.
De publicar-me em pó estais perdoados.
Devo-me eterna vendida em hasta pública.


Traficantes de peles, à puridade
vos digo: só mentira arrecadais.
Porque tal como o lótus, a verdade
vos dou na comunhão que não tomais.


Como dizer o silêncio?


Se em folhagem de poema
me catais anacolutos
é vossa a fraude. A gema
não desce a sons prostitutos.


O saltério, diletante,
fere a Musa com um jasmim?
Só daí para diante
da busca estará o fim.


Aberta a porta selada,
sou pensada já não penso.
Se a Musa fica calada
como dizer o silêncio?


Atirar pérola a porco?
Não me queimo na parábola.
Em mãos que brincam com o fogo
é que eu não ponho a espada.


Dos confins, o peristilo
calo com pontas de fogo,
e desse casto sigilo
versos são só desafogo.


E também para que me lembrem
deixo-os no mercado negro,
que neles glórias se vendem
e eu não sou só desapego.


Raiz de Deus entre os dentes,
aí, pára a transmissão.
Ultra-sons dessas nascentes
só aves entenderão.

Natália Correia

9.28.2006

Saber a Mar























Igor Amelkovich




Sabíamos do mar sem o sabermos

Sabíamos do mar sem o sabermos,
do mar dos mapas, da cor azul do mar,
dos naufrágios no mar,
do sol solto no mar.

Sabíamos do mar sem o sentirmos
nos poros dilatados pelo mar,
o verdejante mar escalando as montanhas
tão bruscas como o sal.

Sabíamos do mar em sinuosos sinos
assinalando a noite
com corações arrepiados,
abertos como mãos
sulcadas de cabelos e molhadas
de rugas e escamas.

Sabíamos do mar em signos, símbolos,
tropos e metáforas.
Sabíamos do mar?
Sabíamos o mar.
Sabíamos a mar

António Rebordão Navarro