100 MYTOS

5.27.2006

Aquilino Ribeiro

Neste Blog dedicado a poetas...
A memória de um grande escritor português






















Aquilino Ribeiro pelo pintor Abel Manta



A PELE DO BOMBO

Anos e anos a carretar leite, vila vai, vila vem, aborridos seus olhos de andar a rastos pela invariável fita do caminho, o cavalo do Cleto arriou. Era lento e preso da marcha, como se o arcabouço deprimido empreendesse fundir-se no repouso aliciador da terra. Tinham-lhe nascido alifates nos tendões e nas jogas, e com a gangrena das suas mataduras embebedavam-se as moscas de dez aldeias. À sobreposse, lá continuava a fazer a romaria cotidiana, saindo da loja com o cantar matutino dos galos, para volver quando os bois remoíam nos estábulos a erva dos pastos. Descansava então umas horas num sono quebrantado de pesadelos, em que havia guerras de cavalos e precipícios a atravessar com cargas descomunais.

Os próprios jericos maviosos eram mais lestos do que ele. E, de vê-lo assim ronceiro, o dono não parava de o espertar com a chibata ou tirar-lhe pela cadenilha bramando:

– Arre! Não deixarás as rezas para a loja, excomungado!?

Uma manhã, afinal, que os cântaros cheios pediam besta de fôlego, deu com a carga no chão. O Cleto, ao ver o leite vertido, saltou nele às arrochadas. Bateu, bateu até lhe doer o braço e lascar o pau. Mas o cavalo, por mais esforços que fizesse, soltando roncos e escabujando, não conseguiu firmar-se nos curvilhões. Puxou-o o Cleto pela cabeçada, pelo rabo, pelas orelhas: ele fincou os cascos, lavrou mais de uma vez o solo, e desfalecido, inerte, abateu para o lado, a dentuça em arreganho a filtrar uma baba sanguinolenta.

Patinhando na terra empapaçada de leite, decidiu- -se o Cleto a desaparelhá-lo. Ao barulho das latas, os pastores assomaram pelos barrocais, e gritou-lhes:
– Botai aqui a mão, rapazes!

Acudiram daqui, dalém, com a gaita no surrão e a cacheira no ar; e uns pela rabadilha, outros pela samarra, puseram o cavalo em pé. O Cleto animou-o, e reajustando o aparelho e tampando os potes, tangeu-o com brando jeito:

– Anda lá ... anda, alminha do Senhor!

Entesando-se, todas as energias crispadas no arranco, começou o cavalo a andar. Mas o seu passo era titubeante, aos torcilhões, tem-te-não-caias.

– Vai a ensaiar o sarambeque – disse um pastor.

– Não bota à vila! – sentenciou outro em tom de reprimenda ao gracioso.

O Cleto engalfinhou-lhe os dedos pelas clinas a ampará-lo. Mas breve as pernas lhe fraquejaram, sacudidas de tremor, e ajoelhando com brusquidão desabou para a banda, desamparado, como se o estatelasse um raio.

O Cleto sovou-o a pontapés, arrepelando-se e chamando-se um desinfeliz da sorte.

– Vá por besta, tio Cleto! – aconselhou um dos rapazes.

Tentou ainda pô-lo em pé, ora à força de catanada, ou com vozes de incitamento. Mas o animal nem buliu, de olhos esgazeados, perdidos num horizonte de bruma.

O Cleto deu-lhe um último trompaço na morca e, a praguejar, tirou-lhe a carga. E tornou esbaforido à aldeia em cata duma jumenta, deixando-o rodeado de cães que, língua desembainhada, lambiam o leite do chão.

Quando reapareceu com a azêmola, o cavalo estava sobre os joelhos, e mansamente roía os tojos do caminho. E, movido por um sentimento, não saberia dizer se de utilidade, se de dó, enxotou-o na direcção do povo à pedrada.

Trôpego e triste, espontando as urzes e os fetos novos, encaminhou-se o garrano para o estábulo, e essa noite dormiu-a a sono solto.

Manhã cedo, veio o Cleto e, sem dizer bus, tirou a albarda e potes do leite para a rua. De soslaio, o cavalo seguia-lhe a manobra, à espera dos pontapés, que eram, de costume, o leva-arriba. Mas, desta feita, o dono entrou e saiu sem lhe tocar.

Afeito à volubilidade dos homens, não lhe causou o facto estranheza. Sabia que era fado seu marchar, e amenidades da ilusão desaconselhava-lhas o velho instinto de malhadiço. E voluptuosamente foi-se deixando na cama, que nunca ela era tão doce como de manhãzinha, entre o sossego da noite a extinguir-se e horas ásperas de caminho a tropicar.

Estava nesta grata lasseira, ouviu lá fora um zurro.Ouviu-se retumbar uma, duas vezes, perfeitamente zurro jactancioso e optimista de jumento estupidarrão e bem tratado. E, depois duns segundos de casuística, vencido mais que tudo pela curiosidade, ergueu-se e foi espreitar. O Cleto aparelhava o asno que de véspera o revezara na jornada para a vila, enquanto Joana lhe ia chegando à boca, meiguiceiramente, uma a uma, molhadinhas de trevo.

– Grande paparreta! – considerou para consigo, roído de inveja ante o glutão, de olhinho gozoso, semicerrado, a retraçar o que lhe davam. Mas aquilo era um autêntico esbulho! Aquele trevo pertencia-lhe, pois não pertencia!? E, saindo fora resolutamente, pregou uma dentada na burra, e apresentou o focinho à mão liberal de Joana. Mas o Cleto descarregou-lhe de mão aberta duas cutiladas nas orelhas, e ele voltou para a loja triste e odiando.

Moinou à solta todo o santo dia, tosando as febras e giestas dos cômoros, no meio das boieirinhas que andavam ao cibato e não tinham medo dele. E à boca da noite recolheu à cavalariça contente e meio farto.

Uma vez ainda experimentou o Cleto deitar-lhe a cilha; metade por manha, metade por fraqueza, deitou-se ao chão, e nem a poder de castigo ou de afagos se convenceu a seguir jornada. O dono dali em diante passou a largá-lo todas as manhãs à gandaia, e ele, ainda que sob o despeito de tamanho desprezo, sentia-se conformado com a macaca. Livremente ia pastar pelos caminhos e ribanceiras das fontes, mas limitava-se a rondar em volta do povo, que lhe não consentiam os esparavões deitar mais longe. E ao bater das avemarias era certo na loja, folgado, regalado daservinhas e incensos de Nosso Senhor, menos dorida a pele sobre os ossos.

Uma tarde, os garotos correram-no à lapada e teve de dar uma carreira, botar além dos seus domínios, o que era uma violência para as suas pernas zambras e combalidas. Quando voltou ao povo, já as vacas badalejavam à manjedoira. A loja estava fechada e não se descobria vivalma. Depois de descrever umas voltas ao acaso, cismar no meio da rua, volveu à porta da estrebaria e ali quedou muito tempo, cabeça baixa, à espera. Afinal, como ninguém se mostrasse, soltou um relincho, primeiro, rápido e suplicante, a advertir, depois, espaçado e de queixa; por último, um nitrido prolongado e aflitivo que fez chorar na cocheira próxima a égua velha do Senhor Reitor.

Relinchou, relinchou e, como não lhe valessem, cheio de angústia e de raiva, desatou a escarvar a terra. Ninguém veio. Com a mão esgadanhou à porta, trabucou. Debalde. Já o seu próprio desespero desfalecia quando se apercebeu duns vultos que avançavam. Pelo andar e a estatura reconheceu, de salto, o filho do Cleto e, enristando as orelhas, em voz baixa e agradecida orneou. Mas o velhaco jogou-lhe um pau à cabeça, e foi dormir ao relento, longe dali, transido de pavor e desgostoso com os homens.

No dia seguinte, ao sol-pôr, avistou o dono que regressava da vila, escarrapanchado entre os potes e governava a asna pelo cabresto. E saiu-lhe ao encontro, ralado de queixas e de saudades que ele podia ler no desafogo que trasbordava dos seus olhos húmidos. O Cleto deitou-se abaixo, porventura com receio de algum desatino. E muito cordial coçou-o e bateu-lhepalmadinhas nas ancas, ao passo que murmurava palavras que não compreendia mas eram mais dolentes que o crepúsculo da tarde nas estradas desertas por longes terras. E, reconciliado com o leiteiro, foi até o desenfado de o choutar atrás da burrinha para casa. Nessa noite dormiu como um justo, satisfeito consigo e com o mundo.
Os tempos foram passando e, porta franca, sangue mais leve, pelagem a rebentar com o Estio, o lázaro começou a rejuvenescer na vida de vagabundo.

***

Com besta de empréstimo, o Cleto chegava uns dias com o leite azedo, outros tarde e às más horas.

Acabou por não haver alma que lhe dispensasse um sendeiro e o leite coalhou nas panelas. Na manhã seguinte, ainda havia estrelas, bateu-lhe à porta um sujeito, com horsa possante pela rédea, a pedir o rol.

Da soleira, estremunhado, o Cleto respingou:

– Que está para aí a alanzoar, homem?

– Já lhe disse: está despedido da fábrica. Passe para cá o rol...

O Cleto protestou; ia comprar o macho do defunto Isidro e o serviço ficava regularizado duma vez para sempre.

O outro não lhe deu ouvidos e partiu sem a relação a levantar o leite. Chegado ao largo da fonte, puxou do chifre e três vezes buzinou. As mulheres acudiram com as vasilhas à cabeça; e como o Cleto lhes fizera perder um dia, tinha fama de trapaceiro e era um farroupilha, os potes partiram para a vila atestados.

O Cleto, entrementes, deitou-se a falar com o dono da fábrica, o Sr. José da Loba, homenzinho gordanchudo e tatibitate, mas rico e de muita influência eleitoral. Sua senhoria mandou dizer que a resolução era inabalável e deu-lhe umas calças velhas e uma espórtula em dinheiro. Quando o Cleto contou os mal-empregados passos, Joana disse:

– Amanhã vou lá eu.

Arreou-se muito: saia de baeta justa na anca, chambre que era um jardim, chinelinha de verniz no pé, e limpa e escarolada foi.

– O Sr. José da Loba não está – responderam-lhe.

Esbracejando, forçou as portas até chegar ao senhoraço:

– Então a que vens, Joana ?

– Ainda mo pergunta? Quero o meu marido nos leites, ouviu?

– Mas como, rapariga, se ele não tem besta, traz tudo ao deus-dará? Os fornecedores desertam, estás a ver, descoroçoados os melhores. Raro o dia em que o leite não venha escasso ou se não estrague parte, umas vezes porque chega tarde, outras, eu sei, porque os produtores perderam o respeito e fazem tibornada. Não, assim não pode continuar!

– Já lhe disse. Se quer o serviço bem feito, empreste-lhe dinheiro para comprar uma cavalgadura. Não faz favor nenhum.

– Ora, tu és tola, por mais que me digam!... Mas ouve, mesmo que eu cedesse... ninguém mais lhe quer dar o leite...

– Cantigas! O que eles são é uma corja de invejosos. Empreste-lhe você dinheiro e verá.

– Não, já te disse que não, mulher! Escusas de te matar!

– Sim? Não o fará, mas diabos me levem se em voz alta não for dizer à Senhora D. Zezinha, a todo o mundo, que você é meu amigo.

Agarrando-a pelo braço, empurrou-a tranquilamente para a porta:

– Quem te pega? Vai, mulher, vai!

Soltou-se o pranto nos olhos de Joana:

– Quando me cometeu eram sete falinhas doces...

Em voz terna, acariciado da voluptuosidade das lágrimas, retorquiu:

– Olha, Joana, eu nunca deixarei de te socorrer; mas lá quanto a readmitir o teu homem, tó ruça! Tenho perdido um dinheirão por causa dele; nem tu imaginas!

O sangue tingia as faces de Joana, apagando-lhes as rugas de sete ninhadas de filhos. Além de que os seus olhos muito pretos eram sempre bonitos, com o choro veio-lhe uma expressão nova, quase de donzela, que esbraseou o Loba. Passando-lhe o braço em torno do pescoço, bichanou ao ouvido:

– Ouve, Joana, eu cá serei sempre o mesmo para ti. Mas é preciso que me correspondas… Tu serás sempre a mesma para mim?... Dize… O teu homem que vá dar o dia; tem bom corpo, trabalhe.

Em voz encatarroada, gemeu:

– Vamos morrer de fome.

– Doida... doidona... se soubesses o bem que te quero, não dizias disparates!

E, encostando a cabeça à dela, beijocou-a, deixou-lhe pela nuca, pelas têmporas, uma baba fátua de caracol:

– Joaninha, tu agora vais a casa da Borralha... hem?
Já lá vou ter.

– Não, hoje não.

– Hoje, sim!

– E admite o meu homem?

– Vai, lá falaremos!

Joana não perdeu cinco minutos à espera em casa da alcoveta.

O Loba chegou a soprar, olhinhos a arder, como sempre que ela descia da Serra, fresca, a cheirar à erva das altitudes, carnes enxutas, apetitosa do seu ventre de vaca lasciva.

Já tarde, o homem importante, limpando o suor, desdobrava uma nota de cinco mil réis no oleado do toalete. E à pressa, enjoado, despedia-se:

– Aqui tens; vai com Deus. Dize ao Anacleto que não o esqueço, mas lá quanto a voltar ao leite escusa de insistir. Adeuzinho!

Em cima do catre, Joana empurrava para dentro do colete de cordões os odres lassos dos seios. Logo que o Loba saiu, precipitou-se sobre o dinheiro e escondeu-o entre o couro e a camisa, contente de poder comprar a sua fornada de pão e talvez uma saia nova de chita.

Quando chegou à Serra, os gados em procissão entravam no povo. De alma simples e bonacheirona, o Cleto não se admirou ao dar-lhe a mulher conta do recado. Nem mesmo tomou o peso da liberalidade do ricaço, habituado a elas, e de moral amolecida. Quantoà despedida irrevogável, da fábrica, encolheu os ombros:

– Pois que dizia eu?!

* * *

Naquela manhã não lhe abriram a porta. Como tivesse fome, depois de relinchar, relinchar até lhe doer a goela, pôs-se a catar no estrume as paveias e a farfalha dos sargaços. O Cleto trabucava lá fora, e, sentindo-lhe o manejo, idas e vindas, estava indignado e cheio de ferocidade.

À tardinha, apareceu finalmente a meter-lhe a cabeçada, e muito submisso, pelo rabeiro, deixou-se conduzir atrás. Na rua, Joana deu-lhe uma côdea de pão e, a passo vagaroso, tomaram os três o caminho do outeiro, onde cresciam escarapetos e outras plantas bravias, e as pegas, pela tarde, se enxergavam em sua saraivada farândola. Havia lá cisternas de minas abandonadas, corcovas do desmonte por entre o urgueiral e, porque sempre se temera de lugares solitários, em sua estranheza perguntava:

– Que diabo vamos fazer para aqui?

Joana caminhava ao lado de Cleto, de mão a apanhar a saia, para que não roçasse a lama.

E ele lambeu-lha, balda velha que ganhara ao distingui-la da manápula bruta do Cleto. Desta feita a mão terna e blandiciosa, apenas trémula como nunca, acariciou-lhe a estrela corrida que muito admirava em si quando se dessedentava nos poceiros. E afagos assim morosos e tristes mais o fizeram desconfiar.

A chuva lavara o céu e nele os perfumes das giestas e da vela-luz pareciam andar boiando, não mais voláteis que nimbos brancos, matinais, à flor dum rio. E, trespassado da sensibilidade dos aromas, aspirou e arfou regaladamente, como nos atalhos quietos,quando as maias despejavam sobre ele cestadas de incenso.

Mas ao passo que ia atrás dos amos, inebriado, sorvendo o ar, ruminava a sua filosofia suspicaz de vagabundo.

Ao chegar a meio do cabeço, uma poldra passou a correr, veloz, narinas cheias de escuma e clinas ao vento. Corria como um raio, mal tocando a terra e roçando as urzes. E, na peugada, galopava o cavalo branco do moleiro, ridículo, com a carga na barriga, fumegando e arrifando. Homens, de cabeça ao léu e aos gritos corriam-lhes no encalço.

Naquele episódio fugitivo evocou o garrano a sua mocidade longínqua. E, apercebendo-se do desejo impetuoso dos cavalos e da arisca e arrebatada luxúria das éguas, num relincho disse ao grotesco e heróico potro do moleiro:

– Aí, aí, seu valente, a poldra está mortinha!

E, em voz rápida, o outro respondeu:

– Lá vamos, amigo, lá vamos!

Chegou ao cimo do teso, pensativo e melancólico. Contra uma laja o filho do Cleto amolava um facalhão. E o garrano, que estava ressentido com ele, arreganhou os dentes, ameaçador. O rapaz, com um safanão que se perdeu no ar, sacudiu-o.

O Cleto prendeu-o a um carvalhiço, depois do que lhe vendou os olhos com o lenço. E outra vez fez o seu reparo:

– Mas que endróminas são estas?!

De repente sentiu um beliscão desagradável no pescoço e uma queimadura, estreita como chicotada, que lhe apanhava a garupa de lés a lés e se perdia por debaixo da pele. E pouco a pouco começou a achar-se leve, leve como se um pé de vento fosse capaz de o rebalsar pelo espaço num galão vertiginoso. Ao mesmo tempo, por detrás do farrapo vermelho, os seus olhos pareciam ver com diversa claridade. Ali, lá em cima a poldra e o cavalo mordiam-se num abraço rabioso. Também fora pimpão e chibante e a dentada com que ferrava as éguas pelo cachaço tão raivosa era de cio que elas abanavam como um canavial. Desabava sobre elas com a rapidez do nebri, e recordou-se ... Uma vez rebentara a retranca para saltar na égua aluada dum passageiro que o provocava da argola da taberna com gemidos langorosos. Outra vez fugira para a serra mais a potra do mestre-ferrador e, com meio mundo atrás: – aqui vai o rasto! rincharam além! arreta! aqueibá! – quando os pilharam, ela, e ele, saciados, ripavam placidamentea ervinha duma fonte.

Na cernelha a torrente tépida lembrava um afago da mão de Joana, que nunca lhe fizera mal. E sentia-se bem, inundado dum gozo desconhecido, quando lhe faleceram as forças e baqueou. Uma vez em terra, através da venda ofereceu-se-lhe um horizonte imprevisto, mais diáfano e arroxeado que certas púrpuras do poente para os lados do mar. Tinha vontade de dormir. Oh, como o chão era macio! Qualquer coisa parecido com asa ou o primeiro arrebol do dia roçava-lhe a pelagem, suave, suavemente.

Joana ergueu-lhe o lenço dos olhos e por hábito novamente beijou a mão cujas meiguices vinham temperadas de tristeza. O ar, diante dele, era menos que um sopro que não basta para encher os bofes uma vez. Ao longe, para lá dos montes, avistou umcorpo afogueado que descia. E vagamente interrogou-se:

– Será o Sol?

Depois, lembrado da poldra e do garanhão que galopavam para as núpcias ferozes, considerou:

– É o amor dos cavalos.

No horizonte, a grande rosa caiu arrastando o ar todo. E às escuras se engolfou no escuro nada.

* * *

O Cleto puxou-lhe por uma perna e logo a seguir pespegou-lhe um pontapé no bandulho a título piedoso de sondagem. À Joana que chorincava disse:

– Chorar mas é por uma alma cristã, mulher!

Andava a cair de podre.

– Coitadinho, era um borrego de mansidade.

Fartou-se de andar connosco às cavaleiras e de nos ajudar a ganhar o pão!

O José Cleto meteu-lhe a faca ao tendão. E ela foi pensando nos bons tempos, que não tornam mais, quando, moça e bonita, requestada dos fidalgos, aparecia na vila montada para uma banda no seladoiro nédio do cavalo.

– Já nem os ciganos lhe pegavam, estava a dar o cadilho – proferiu o Cleto enquanto lhe esticava o pernil para o Zé esfolar. – Se o deitamos à margem passava o seu mau quarto de hora com os lobos. Tenho coração, foi melhor assim, De resto, a pele sempre rende uns patacos vendida aos samarreiros ...

– Já lhe disse! – obtemperou o filho. – A pele é para o bombo.

– Qual bombo ou qual diabo?!...

– Sim, senhor, para o bombo! De cabra rebentam com duas maçanetadas e este ano a rusga vai à Lapa e queremos-lhe zurrar.

Ao ver o ventre imundo do cavalo, esfaqueado por mão inexperiente, Joana foi-se dali cheia de nojo e anuviada.

***
.... "A Pele do Bombo" de Aquilino Ribeiro

***

Em memória do ilustre escritor, 43 anos após a sua morte.
Aquilino Ribeiro n. 13 Setembro de 1885 m. 27 de Maio de 1963

5.26.2006

A Mensagem - parte II
















SEGUNDA PARTE / MAR PORTUGUEZ
Possessio maris.

I. O INFANTE

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te portuguez..
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

II. HORIZONTE

O mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos merecidos da Verdade.

III. PADRÃO

O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

IV. O MOSTRENGO

Mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»

«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

V. EPITÁFIO DE BARTOLOMEU DIAS

Jaz aqui, na pequena praia extrema,
O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,
O mar é o mesmo: já ninguém o tema!
Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.

Vl. OS COLOMBOS

Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.

Mas o que a eles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz dele história.
E por isso a sua glória
É justa auréola dada
Por uma luz emprestada.

VII. OCIDENTE

Com duas mãos — o Ato e o Destino —
DesvendAmos. No mesmo gesto, ao céu
Uma ergue o fecho trêmulo e divino
E a outra afasta o véu.

Fosse a hora que haver ou a que havia
A mão que ao Ocidente o véu rasgou,
Foi a alma a Ciência e corpo a Ousadia
Da mão que desvendou.

Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal
A mão que ergueu o facho que luziu,
Foi Deus a alma e o corpo Portugal
Da mão que o conduziu.

VIII. FERNÃO DE MAGALHÃES

No vale clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra inteira.
E sombras desformes e descompostas
Em clarões negros do vale vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-se na escuridão.

De quem é a dança que a noite aterra?
São os Titãs, os filhos da Terra,
Que dançam na morte do marinheiro
Que quis cingir o materno vulto
— Cingiu-o, dos homens, o primeiro —,
Na praia ao longe por fim sepulto.

Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda comanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra inteira com seu abraço.

Violou a Terra. Mas eles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-se nos horizontes,
Galgam do vale pelas encostas
Dos mudos montes.

IX. ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA

Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovôes,
O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.

X. MAR PORTUGUÊS

Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

XI. A ÚLTIMA NAU

Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol azíago
Erma, e entre choros de ânsia e de presago
Mistério.

Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.

Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou 'spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.

Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.

XII. PRECE

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistaremos a Distância —
Do mar ou outra, mas que seja nossa!


Fernando Pessoa

5.22.2006

A Mensagem - parte I

Voltando a Fernando Pessoa....
"A Mensagem" do poeta
















I - Primeira Parte: Brasão

Bellum sine bello.

I. OS CAMPOS

PRIMEIRO / O DOS CASTELOS

A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,

A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar sphyngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.


SEGUNDO / O DAS QUINAS


Os Deuses vendem quando dão.
Comprase a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!

Baste a quem baste o que Ihe basta
O bastante de Ihe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.

Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.

II. OS CASTELOS

PRIMEIRO / ULISSES

O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo —-
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

SEGUNDO / VIRIATO

Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instinto teu.

Nação porque reencarnaste,
Povo porque ressuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste —
Assim se Portugal formou.

Teu ser é como aquela fria
Luz que precede a madrugada,
E é ja o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.

TERCEIRO / O CONDE D. HENRIOUE

Todo começo é involuntáario.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.

À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
«Que farei eu com esta espada?»
Ergueste-a, e fez-se.

QUARTO / D. TAREJA

As naçôes todas são mystérios.
Cada uma é todo o mundo a sós.
Ó mãe de reis e avó de impérios,
Vela por nós!

Teu seio augusto amamentou
Com bruta e natural certeza
O que, imprevisto, Deus fadou.
Por ele reza!

Dê tua prece outro destino
A quem fadou o instinto teu!
O homem que foi o teu menino
Envelheceu.

Mas todo vivo é eterno infante
Onde estás e não há o dia.
No antigo seio, vigilante,
De novo o cria!

QUINTO / D. AFONSO HENRIQUES

Pai, foste cavaleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,
A bênção como espada,
A espada como benção!

SEXTO / D. DINIS

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.

SÉTIMO (I) / D. JOÃO O PRIMEIRO

O homem e a hora são um só
Quando Deus faz e a história é feita.
O mais é carne, cujo pó
A terra espreita.

Mestre, sem o saber, do Templo
Que Portugal foi feito ser,
Que houveste a glória e deste o exemplo
De o defender.

Teu nome, eleito em sua fama,
É, na ara da nossa alma interna,
A que repele, eterna chama,
A sombra eterna.

SÉTIMO (II) / D. FILIPA DE LENCASTRE

Que enigma havia em teu seio
Que só gênios concebia?
Que arcanjo teus sonhos veio
Velar, maternos, um dia?

Volve a nós teu rosto sério,
Princesa do Santo Graal,
Humano ventre do Império,
Madrinha de Portugal!

III. AS QUINAS

PRIMEIRA / D. DUARTE, REI DE PORTUGAL

Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
Em dia e letra escrupuloso e fundo.

Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.

SEGUNDA / D. FERNANDO, INFANTE DE PORTUGAL

Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.

Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro em mim a vibrar.

E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.

TERCEIRA / D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL

Claro em pensar, e claro no sentir,
É claro no querer;
Indiferente ao que há em conseguir
Que seja só obter;
Dúplice dono, sem me dividir,
De dever e de ser —

Não me podia a Sorte dar guarida
Por não ser eu dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
Calmo sob mudos céus,
Fiel à palavra dada e à idéia tida.
Tudo o mais é com Deus!

QUARTA / D. JOÃO, INFANTE DE PORTUGAL

Não fui alguém. Minha alma estava estreita
Entre tão grandes almas minhas pares,
Inutilmente eleita,
Virgemmente parada;

Porque é do português, pai de amplos mares,
Querer, poder só isto:
O inteiro mar, ou a orla vã desfeita —
O todo, ou o seu nada.

QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL

Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

IV. A COROA

NUN'ÁLVARES PEREIRA

Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando.
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.

Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
Que o Rei Artur te deu.

'Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!

V. O TIMBRE

A CABEÇA DO GRIFO / O INFANTE D. HENRIOUE

Em seu trono entre o brilho das esferas,
Com seu manto de noite e solidão,
Tem aos pés o mar novo e as mortas eras —
O único imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.

UMA ASA DO GRIFO / D. JOÃO O SEGUNDO

Braços cruzados, fita além do mar.
Parece em promontório uma alta serra —
O limite da terra a dominar
O mar que possa haver além da terra.

Seu formidavel vulto solitário
Enche de estar presente o mar e o céu
E parece temer o mundo vário
Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu.

A OUTRA ASA DO GRIFO / AFONSO DE ALBUQUEROUE

De pé, sobre os países conquistados
Desce os olhos cansados
De ver o mundo e a injustiça e a sorte.
Não pensa em vida ou morte
Tão poderoso que não quer o quanto
Pode, que o querer tanto
Calcara mais do que o submisso mundo
Sob o seu passo fundo.
Três impérios do chão lhe a Sorte apanha.
Criou-os como quem desdenha.


Fernando Pessoa
A Mensagem - 1ª Parte
"O Brasão"

5.19.2006

O Poeta Mário de Sá Carneiro









"Sá-Carneiro não teve biografia: teve só génio. O que disse foi o que viveu."
Fernando Pessoa

Poeta português, Mário de Sá-Carneiro nasceu em Lisboa em 19 de maio de 1890 e morreu em Paris a 26 de abril de 1916. Filho único de pai engenheiro, a mãe morreu quando ele tinha dois anos. De infância e adolescência difíceis, marcadas pela angústia e pela solidão, em 1912 partiu para Paris, onde pretendeu estudar direito. Frequentando o curso irregularmente, jamais se chegou a formar: às dificuldades emocionais somaram-se as de ordem material. O único amigo era Fernando Pessoa, que o compreendeu e ajudou como pôde. Em Lisboa (1913), introduziu-o entre os modernistas da revista Orfeu. No ano seguinte aparecia o livro de poemas, Dispersão. Em suas cartas para Fernando Pessoa acompanha-se o ritmo crescente de seus problemas, seu desespero, até o suicídio no hotel Nice.

Personalidade dissociada, corroída pela neurose, agitando-se numa acuidade sensorial levada ao paroxismo, Sá-Carneiro encarna como ninguém as frustrações e os pesadelos de sua terra, dividida entre a nostalgia da glória, do luxo, do cristal e ouro do passado, e a atração pela modernidade, pelas luzes da renovação européia. Tudo nele é angústia pessoal e filtração de angústias coletivas. Nesse sentido, quando mais narcisista se debruça sobre si mesmo, dilacerando entre o fascínio a repugnância, mais ainda - e sem que jamais o saiba - traduz o factos de Portugal.

Publicou os seguintes livros: Amizade, peça em três atos (com Tomás Cabreira Junior), 1912; Dispersão, 12 poemas, 1914; A Confissão de Lúcio, narrativa, 1914; Céu em Fogo, novelas, 1915. Deixou inéditos Indícios de Ouro, poemas; e o primeiro capítulo de um novela intitulada Mundo Interior. Mário de Sá-Carneiro deixou a Fernando Pessoa a indicação de publicar sua obra, onde, quando e como lhe parecesse melhor.

"Poeta de sensibilidade multifacetada, Mário de Sá-Carneiro foi essencialmente um esteta. A beleza não era para si um conceito da sua inteligência, antes um inclinação inequívoca do seu temperamento. Muito mais do que uma idéia ela era, por isso, uma força. Ousando 'correr o risco de encarnar a imaginação na vida', o poeta, através dos seus 'olhos audazes de beleza', nunca 'viu' a atividade literária como um mero instrumento ou sequer uma profissão mas sim como um ideal que sempre ambicionou, exigiu e colocou acima de tudo. Neste sentido, o seu poetar é a expressão translúcida da sua própria vida, e esta, inteiramente e só 'um cântico de beleza' cantado até à morte.

A poesia de Sá-Carneiro comunica-nos com uma cintilante transparência metafórica um penoso desencanto que reflete o genuíno equívoco existencial que a sua vida e a sua obra constituíram - escrita a primeira, vivida a segunda - e assim, ambas paradoxais e dramáticas. Por isso um olhar de conjunto sobre a obra do poeta para quem, precisamente, 'vida e arte, no artista confundem-se, indistinguem-se', não pode ignorar que aí se expressa, de forma pungente, uma trágica ambigüidade da sua vida: a procura constante e torturada de uma unidade essencial destinada a ficar 'aquém' - na 'dor de ser-quase, dor sem fim'. É esse modo de ser freneticamente dispersivo e fragmentário, o principal responsável pelo irreparável desajuste que o faz sentir-se precário, apenas 'qualquer coisa de intermédio (...) asa que se elançou e não voou ... ' Para pôr fim a toda esta 'ânsia iriada' proveniente do 'rodopio' e da 'dispersão' em que o seu ser constantemente soçobrava, só restava a grande nobreza de um ato radical, demonstrador da terrível mas 'exemplar coerência' de Mário de Sá-Carneiro. Por isso, 'o remédio era outro: renunciar, vivendo, ou vencer, morrendo'.

O seu essencial carisma residiu, justamente, nessa 'aceitação sem limites da seriedade da poesia' e numa coragem radical e impetuosa que levou o poeta a confrontar-se, sem qualquer hesitação ou distancia com uma solidão extrema, o risco da loucura, indo de forma prematura e inexorável até ao fim final e último. Assim se transformou Mário de Sá-Carneiro em Mestre para a geração presencista que sucedeu a Orpheu e, muito para além desta, num exemplo fatal e magnífico, da atormentada questionação que a poesia moderna não tem deixado de se (im) por.

É precisamente a autenticidade cristalina com que surge poetada esta angústia fundamental a qual, pertencendo à consciência moderna se prende no fundo 'ao fundo humano de todas as épocas', que pode deslocar a obra da particularidade do 'caso' Sá-Carneiro, a esse espaço de rarefação e absoluto onde cabe o repensar incessante dos múltiplos horizontes do existir. Neste sentido, ela mostra-se como indício desse ouro autêntico (e não só aparentemente dourado) de que é feito afinal o verdadeiro ser do seu poetar."


Sintese biográfica de Mário de Sá Carneiro
Da autoria de Ana Nascimento Piedade
Publicada em http://orbita.starmedia.com/mariodesa/biografia.htm

Mário de Sá Carneiro X













Cinco Horas


Minha mesa no Café,
Quero-lhe tanto... A garrida
Toda de pedra brunida
Que linda e fresca é!

Um sifão verde no meio
E, ao seu lado, a fosforeira
Diante ao meu copo cheio
Duma bebida ligeira.

(Eu bani sempre os licores
Que acho pouco ornamentais:
Os xaropes têm cores
Mais vivas e mais brutais.)

Sobre ela posso escrever
Os meu versos prateados,
Com estranheza dos criados
Que me olham sem perceber...

Sobre ela descanso os braços
Numa atitude alheada,
Buscando pelo ar os traços
Da minha vida passada.

Ou acendendo cigarros,
— Pois há um ano que fumo —
Imaginário presumo
Os meus enredos bizarros.

(E se acaso em minha frente
Uma linda mulher brilha,
O fumo da cigarrilha
Vai beijá-la, claramente)

Um novo freguês que entra
É novo actor no tablado,
Que o meu olhar fatigado
Nele outro enredo concentra.

É o carmim daquela boca
Que ao fundo descubro, triste,
Na minha idéia persiste
E nunca mais se desloca.

Cinge tais futilidades
A minha recordação,
E destes vislumbres são
As minhas maiores saudades...

(Que história de Oiro tão bela
Na minha vida abortou:
Eu fui herói de novela
Que autor nenhum empregou...)

Nos cafés espero a vida
Que nunca vem ter comigo:
— Não me faz nenhum castigo,
Que o tempo passa em corrida.

Passar tempo é o meu fito,
Ideal que só me resta:
Pra mim não há melhor festa,
Nem mais nada acho bonito.

— Cafés da minha preguiça,
Sois hoje — que galardão! —
Todo o meu campo de acção
E toda minha cobiça.


Mário de Sá Carneiro

5.18.2006

Mário de Sá Carneiro IX














Sete Canções de Declínio


1

Um vago tom de opala debelou
Prolixos funerais de luto de Astro —
E pelo espaço, a Oiro se enfolou
O estandarte real - livre, sem mastro.

Fantástica bandeira sem suporte,
Incerta, nevoenta, recamada —
A desdobrar-se como a minha Sorte
Predita por ciganos numa estrada...

2

Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.
- Desçamos panos de fundo
A cada hora vivida.

Desfiles, danças — embora
Mal sejam uma ilusão...
— Cenários de mutação
Pela minha vida fora!

Quero ser Eu plenamente:
Eu, o possesso do Pasmo.
— Todo o meu entusiasmo,
Ah! que seja o meu Oriente!

O grande doido, o varrido,
O perdulário do Instante —
O amante sem amante,
Ora amado ora traído ...

Lançar as barcas ao Mar —
De névoa, em rumo de incerto ...
— Pra mim o longe é mais perto
Do que o presente lugar.

... E as minhas unhas polidas —
Idéia de olhos pintados
Meus sentidos maquilados
A tintas desconhecidas

Mistério duma incerteza
Que nunca se há-de fixar...
Sonhador em frente ao mar
Duma olvidada riqueza ...

— Num programa de teatro
Suceda-se a minha vida:
Escada de Oiro descida
Aos pinotes, quatro a quatro! ...

3

— Embora num funeral
Desfraldemos as bandeiras:
Só as Cores são verdadeiras —
Siga sempre o festival!

Quermesse - eia! — e ruído!
Louça quebrada! Tropel!
(Defronte do carrossel,
Eu, em ternura esquecido...

Fitas de cor, vozearia —
Os automóveis repletos:
Seus chauffeurs - os meus afetos
Com librés de fantasia!

Ser bom... Gostaria tanto
De o ser... Mas como? Afinal
Só se me fizesse mal
Eu fruiria esse encanto.

— Afetos? Divagações
Amigo dos meus amigos
Amizades são castigos,
Não me embaraço em prisões!

Fiz deles os meus criados,
Com muita pena — decerto.
Mas quero o Salão aberto,
E os meus braços repousados.

4

As grandes Horas! — vivê-las
A preço mesmo dum crime!
Só a beleza redime —
Sacrifícios são novelas.

"Ganhar o pão do seu dia
Com o suor do seu rosto"...
— Mas não há maior desgosto
Nem há maior vilania!

E quem for Grande não venha
Dizer-me que passa fome:
Nada há que se não dome
Quando a Estrela for tamanha!

Nem receios nem temores,
Mesmo que sofra por nós
Quem nos faz bem. Esses dós
Impeçam os inferiores.

Os Grandes, partam — dominem
Sua sorte em suas mãos:
— Toldados, inúteis, vãos,
Que o seu Destino imaginem!

Nada nos pode deter:
O nosso caminho é de Astro!
Luto — embora! — o nosso rastro,
Se pra nós Oiro há-de ser! ...

Vaga lenda facetada
A imprevisto e miragens —
Um grande livro de imagens,
Uma toalha bordada ...

Um baile russo a mil cores,
Um Domingo de Paris —
Cofre de Imperatriz
Roubado por malfeitores ...

Antiga quinta deserta
Em que os donos faleceram —
Porta de cristal aberta
Sobre sonhos que esqueceram ...

Um lago à luz do luar
Com um barquinho de corda...
Saudade que não recorda —
Bola de tênis no ar ...

Um leque que se rasgou —
Anel perdido no parque —
Lenço que acenou no embarque
De Aquela que não voltou ...

Praia de banhos do sul
Com meninos a brincar
Descalços, à beira-mar,
Em tardes de céu azul ...

Viagem circulatória
Num expresso de wagons-leitos —
Balão aceso — defeitos
De instalação provisória ...

Palace cosmopolita
De rastaquouères e cocottes —
Audaciosos decotes
Duma francesa bonita ...

Confusão de music-hall
Aplausos e brou-u-há —
Interminável sofá
Dum estofo profundo e mole

Pinturas a ripolin,
Anúncios pelos telhados —
O barulho dos teclados
Das Linotype do Matin ...

5

Manchete de sensação
Transmitida a todo o mundo —
Famoso artigo de fundo
Que acende uma revolução ...

Um sobrescrito lacrado
Que transviou no correio,
E nos chega sujo — cheio
De carimbos, lado a lado ...

Nobre ponte citadina
De intranqüila capital —
A umidade outonal
Duma manhã de neblina ...

Uma bebida gelada —
Presentes todos os dias...
Champanhe em taças esguias
Ou água ao sol entornada ...

Uma gaveta secreta
Com segredos de adultérios...
Porta falsa de mistérios —
Toda uma estante repleta:

Seja enfim a minha vida
Tarada de ócios e Lua:
Vida de Café e rua,
Dolorosa, suspendida —

Ah! mas de enlevo tão grande
Que outra nem sonho ou prevejo...
- A eterna mágoa dum beijo,
Essa mesma, ela me expande ...

6

Um frenesi hialino arrepiou
Pra sempre a minha carne e a minha vida.
Fui um barco de vela que parou
Em súbita baía adormecida ...

Baía embandeirada de miragem,
Dormente de ópio, de cristal e anil,
Na idéia de um país de gaze e abril,
Em duvidosa e tremulante imagem ...

Parou ali a barca — e, ou fosse encanto,
Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento,
Não mais aparelhou... — ou fosse o vento
Propício que faltasse: ágil e santo ...

... Frente ao porto esboçara-se a cidade,
Descendo enlanguescida e preciosa:
As cúpulas de sombra cor-de-rosa,
As torres de platina e de saudade.

Avenidas de seda deslizando,
Praças de honra libertas sobre o mar —
Jardins onde as flores fossem luar;
Largos - carícias de âmbar flutuando ...

Os palácios a rendas e escumalha,
De filigrana e cinza as Catedrais —
Sobre a cidade, a luz — esquiva poalha
Tingindo-se através longos vitrais ...

Vitrais de sonho a debruá-la em volta,
A isolá-la em lenda marchetada:
Uma Veneza de capricho — solta,
Instável, dúbia, pressentida, alada ...

Exílio branco — a sua atmosfera,
Murmúrio de aplausos — seu brou-u-há...
E na Praça mais larga, em frágil cera,
Eu — a estátua "que nunca tombará" ...

7

Meu alvoroço de oiro e lua
Tinha por fim que transbordar...
— Caiu-me a Alma ao meio da rua,
E não a posso ir apanhar!


Mário de Sá Carneiro, ...Paris, Julho e Agosto de 1915

5.16.2006

Mário de Sá Carneiro VIII

















Distante Melodia

Num sonho de Íris morto a oiro e brasa,
Vem-me lembranças doutro Tempo azul
Que me oscilava entre véus de tule -
Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.

Então os meus sentidos eram cores,
Nasciam num jardim as minhas ânsias,
Havia na minha alma Outras distâncias -
Distâncias que o segui-las era flores...

Caía Oiro se pensava Estrelas,
O luar batia sobre o meu alhear-me...
- Noites-lagoas, como éreis belas
Sob terraços-lis de recordar-me!...

Idade acorde de Inter-sonho e Lua,
Onde as horas corriam sempre jade,
Onde a neblina era uma saudade,
E a luz - anseios de Princesa nua...

Balaústres de som, arcos de Amar,
Pontes de brilho, ogivas de perfume...
Domínio inexprimível de Ópio e lume
Que nunca mais, em cor, hei-de habitar...

Tapetes de outras Pérsias mais Oriente...
Cortinados de Chinas mais marfim...
Áureos Templos de ritos de cetim...
Fontes correndo sombra, mansamente...

Zimbórios-panteões de nostalgias,
Catedrais de ser-Eu por sobre o mar...
Escadas de honra, escadas só, ao ar...
Novas Bizâncios-Alma, outras Turquias...

Lembranças fluidas... Cinza de brocado...
Irrealidade anil que em mim ondeia...
- Ao meu redor eu sou Rei exilado,
Vagabundo dum sonho de sereia...


Mário de Sá Carneiro

5.15.2006

Mário de Sá Carneiro VII


















Dispersão


Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro —
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...

E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas Pra se dar
Ninguém mas quis apertar
Tristes mãos longas e lindas

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? UM rastro?... Ai de mim!,..

Desceu-me na alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em urna bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço,..

Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba.



Mário de Sá Carneiro

5.14.2006

Mário de Sá Carneiro VI















O FANTASMA


O que farei na vida ? o Emigrado
Astral após que fantasiada guerra,
Quando este Oiro por fim cair por terra,
Que ainda é Oiro, embora esverdinhado?

(De que Revolta ou que país fadado?)
? Pobre lisonja, a gaze que me encerra...
Imaginária e pertinaz, desferra
Que força mágica o meu pasmo aguado?

A escada é suspeita e é perigosa:
Alastra-se uma nódoa duvidosa
Pela alcatifa ? os corrimões partidos...

? Tapam com rodilhas o meu norte,
? As formigas cobriram minha Sorte,
? Morreram-me meninos nos sentidos...



Mário de Sá Carneiro
Paris, 21 Janeiro 1916.

5.13.2006

Mário de Sá Carneiro V

















MANUCURE


Na sensação de estar polindo as minhas unhas,
Súbita sensação inexplicável de ternura,
Tudo me incluo em Mim ? piedosamente.
Entanto eis-me sozinho no Café:
De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.
De volta, as mesas apenas ? ingratas
E duras, esquinadas na sua desgraciosidade
Bocal, quadrangular e livre-pensadora...
Fora: dia de Maio em luz
E sol ? dia brutal, provinciano e democrático
Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos
Nem podem tolerar ? e apenas forcados
Suportam em náuseas.
Toda a minha sensibilidade
Se ofende com este dia que há-de ter cantores
Entre os amigos com quem ando às vezes ?
Trigueiros, naturais, de bigodes fartos ?
Que escrevem, mas têm partido político
E assistem a congressos republicanos,
Vão às mulheres, gostam de vinho tinto,
De peros ou de sardinhas fritas...
E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas
E de as pintar com um verniz parisiense,
Vou-me mais e mais enternecendo
Até chorar por Mim...
Mil cores no Ar, mil vibrações latejantes,
Brumosos planos desviados
Abatendo flechas, listas volúveis, discos flexíveis,
Chegam tenuamente a perfilar-me
Toda a ternura que eu pudera ter vivido,
Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,
Todos os cenários que entretanto
Fui...Eis como, pouco a pouco, se me foca
A obsessão débil dum sorriso
Que espelhos vagos reflectiram...
Leve inflexão a sinusar...
Fino arrepio cristalizado...
Inatingível deslocamento...
Veloz faúlha atmosférica...

E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço
Por inúmeras intersecções de planos
Múltiplos, livres, resvalantes.

É lá, no grande Espelho de fantasmas
Que ondula e se entregolfa todo o meu passado,
Se desmorona o meu presente,
E o meu futuro é já poeira...

Deponho então as minhas limas,
As minhas tesouras, os meus godets de verniz,
Os polidores da minha sensação ?
E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!
Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta,
Varar a sua Beleza ? sem suporte, enfim! ?
Cantar o que ele revolve, e amolda, impregna,
Alastra e expande em vibrações:
Subtilizado, sucessivo ? perpétuo ao Infinito!...

Que calotes suspensas entre ogivas de ruínas,
Que triângulos sólidos pelas naves partidos!
Que hélices atrás dum voo vertical!
Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténis! ?
Que loiras oscilações se ri a boca da jogadora...
Que grinaldas vermelhas, que leques, se a dançarina russa,
Meia nua, agita as mãos pintadas da Salomé
Num grande palco a Oiro!
? Que rendas outros bailados!

Ah! mas que inflexões de precipício, estridentes, cegantes,
Que vértices brutais a divergir, a ranger,
Se facas de apache se entrecruzam
Altas madrugadas frias...
E pelas estações e cais de embarque,
Os grandes caixotes acumulados,
As malas, os fardos ? pêle-mêle...
Tudo inserto em Ar,
Afeiçoado por ele, separado por ele
Em múltiplos interstícios
Por onde eu sinto a minh'Alma a divagar!...

? Ó beleza futurista das mercadorias!

? Sarapilheira dos fardos,
Como eu quisera togar-me de Ti!
? Madeira dos caixotes,
Como eu ansiara cravar os dentes em Ti!
E os pregos, as cordas, os aros... ?
Mas, acima de tudo,
Como bailam faiscantes,
A meus olhos audazes de beleza,
As inscrições de todos esses fardos ?
Negras, vermelhas, azuis ou verdes ?
Gritos de actual e Comércio & Indústria
Em trânsito cosmopolita:

FRÁGIL! FRÁGIL!

843 ? AG LISBON

492 ? WR MADRID

Ávido, em sucessão da nova
Beleza atmosférica,
O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la
À minha volta. E a que mágicas, e m verdade, tudo baldeado
Pelo grande fluido insidioso,
Se volve, de grotesco ? célere,
Imponderável, esbelto, leviano...?
Olha as mesas... Eia! Eia!
Lá vão todas no Ar às cabriolas,

Em séries instantâneas de quadrados
Ali ? mas já, mais longe, em losangos desviados...
E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,
E misturam-se às mesas as insinuações berrantes
Das bancadas de veludo vermelho
Que, ladeando-o, correm todo o Café...
E, mais alto, em planos oblíquos,
Simbolismos aéreos de heráldicas ténues
Deslumbra m os xadrezes dos fundos de palhinha
Das cadeiras que, estremunhadas em seu sono horizontal,
Vá lá, se erguem também na sarabanda...

Meus olhos ungidos de Novo,
Sim! ? meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas,
Não param de fremir, de sorver e faiscar
Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea,
Toda essa Beleza-sem-Suporte,
Desconjuntada, emersa, variável sempre
E livre ? em mutações contínuas,
Em insondáveis divergências...
? Quanto à minha chávena banal de porcelana?

Ah, essa esgota-se em curvas gregas de ânfora,
Ascende num vértice de espiras
Que o seu rebordo frisado a oiro emite...

É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!......

Dos longos vidros polidos que deitam sobre a rua,
Agora, chegam teorias de vértices hialinos
A latejar cristalizações nevoadas e difusas.
Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,
Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias,
Laços, grifos, setas, ases ? na poeira multicolor ?.





Mário de Sá Carneiro
Poemas Dispersos, Lisboa, Maio de 1915

5.12.2006

Mário de Sá Carneiro IV














CRISE LAMENTÁVEL



Gostava tanto de mexer na vida,
De ser quem sou ? mas de poder tocar-lhe...
E não há forma: cada vez perdida
Mais a destreza de saber pegar-lhe.

Viver em casa como toda a gente
Não ter juízo nos meus livros ? mas
Chegar ao fim do mês sempre com as
Despesas pagas religiosamente.

Não Ter receio de seguir pequenas
E convidá-las para me pôr nelas ?
À minha Torre ebúrnea abrir janelas,
Numa palavra, e não fazer mais cenas.

Ter força um dia pra quebrar as roscas
Desta engrenagem que empenando vai.
? Não mandar telegramas ao meu Pai,
? Não andar por Paris, como ando, às moscas.

Levantar-me e sair ? não precisar
De hora e meia antes de vir prà rua.
? Pôr termo a isto de viver na lua,
? Perder a frousse das correntes de ar.

Não estar sempre a bulir, a quebrar coisas
Por casa dos amigos que frequento ?
Não me embrenhar por histórias melindrosas
Que em fantasia apenas argumento

Que tudo em é fantasia alada,
Um crime ou bem que nunca se comete
Por meu Azar ou minha Zoina suada...




Mário de Sá Carneiro
Poemas Dispersos. Paris, Janeiro.

Mário de Sá Carneiro III



















AQUELOUTRO


O dúbio mascarado o mentiroso
Afinal, que passou na vida incógnito
O Rei-lua postiço, o falso atónito;
Bem no fundo o covarde rigoroso.

Em vez de Pajem bobo presunçoso.
Sua Ama de neve asco de um vómito.
Seu ânimo cantado como indómito
Um lacaio invertido e pressuroso.

O sem nervos nem ânsia ? o papa? açorda,
(Seu coração talvez movido a corda...)
Apesar de seus berros ao Ideal

O corrido, o raimoso, o desleal
O balofo arrotando Império astral
O mago sem condão, o Esfinge Gorda.




Mário de Sá Carneiro
Paris, Fevereiro 1916.

5.11.2006

Mário de Sá Carneiro II

















Estátua Falsa

Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minha'alma desceu veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distância.

Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...


Mário de Sá Carneiro
Dispersão, Paris, 5 de Maio de 1913

5.09.2006

Mário de Sá Carneiro I
























*CARANGUEJOLA*


Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...

Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho? que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor ?
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo ?
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! levem-me prá enfermaria! ?
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará..

Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras...
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.Últimos Poemas, Paris,


Mário Sá Carneiro
Ùltimos poemas, Paris, Novembro 1915

A 10 dias da data do nascimento do poeta...
10 poemas em sua memória.

5.04.2006

Novos Poetas I

















Ser Só

Se estas só não fiques triste,

Da ouvidos à solidão e fala com o outro lado de ti,

Ficarás assim em presençaa do teu maior amigo.

Aquele ser invisivel a quem pedes conselhos,

Com quem dialogas em pensamento,

A quem pedes compreensão para contigo.

Vais descobrir coisas lindas todos os dias,

Vais com ele até à tua infância,

Com ele, vais em busca do futuro,

Com ele dividirás tristezas e alegrias,

Com ele descobrirás a tolerância,

Com ele navegas pelo seguro.

Estavas só e triste,

Mas um novo aliado já descobriste.

Sê forte e continua as tuas descobertas,

Agora na outra face do teu ser,

Aqui há também um inimigo,

O que te tira o sono,

O que te tira o prazer.

Mas ouve-o, escuta-o com atenção,

Ele tem coisas para te dizer.

Coisas más, por certo,

Coisas terríveis, às vezes,

Mas não fiques triste,

Mantem o teu espírito aberto.

Este inimigo vai-te tentando,

Vai-te obrigando a fazer o que tu não queres,

Vai estar contra o teu amigo também,

Mas... luta, luta porque vale a pena.

São duas forças contra uma,

A tua e a do teu amigo,

São dois contra o exterminador.

Mas uma batalha perdida

Não significa perder a guerra,

Se tudo for feito com amor.

Como vês, não estas só!

Se não estas só, não podes estar triste.

Então abre o teu espírito à convivência,

Continua a dialogar contigo próprio,

Um dia sorrirás de alegria,

Quando olhares à volta do teu "EU"

E vires uma imensa multidão

Que te dá vivas e te adora.

Se estás só, não fiques triste,

Porque afinal a maior tristeza

É a de pensar que estás só.

Não tens razão para estar triste,

Porque afinal a palavra SÓ não existe!

Lobo Amaral

5.02.2006

Bartolomeu






















BARTOLOMEU MARINHEIRO


Era uma vez
um capitão português
chamado Bartolomeu
que venceu
um gigante enorme e antigo.
Bartolomeu, em menino
pequenino,
ia para o pé do mar...

e ficava a olhar
o mar...
E Bartolomeu cismava...
Ó que lindo, ó que lindo,
o mar, e a sua voz profunda e bela!
Uma nuvem no céu, era uma caravela
que novos céus andava descobrindo...

Ó que lindo, os navios,
que vão suspensos entre a água e o céu,
com velas brancas e mastros esguios,
e com bandeiras de todas as cores!
Bartolomeu cismava
porque ouvia
tudo o que o mar contava
e lhe dizia.



Afonso Lopes Vieira (1912)