100 MYTOS

3.18.2006

Nobre Poeta


António


Que noite de inverno! Que frio, que frio!
Gelou meu carvão:
Mas boto-o à lareira, tal qual qual estio,
Faz sol de verão!
Nasci num reino d'Oiro e amores,
À beira-mar.
Ó velha Carlota! Tivesse-te ao lado,
Contavas-me histórias:
Assim... desenterro, do Val do Passado,
As minhas Memórias.
Sou neto de Navegadores,
Heróis, Lôbos-d'água, Senhores
Da Índia, d'Áquem e d'Álem-mar!
Moreno coveiro, tocando viola,
A rir e a cantar!
Empresta, bom homem, a tua sachola,
Eu quero cavar:
E o Vento mia! E o Vento mia!
Que irá no Mar!
Erguei-vos, defuntas! Da tumba que alveja
Qual lua, a distância!
Visões enterradas no adro da Igreja
Branquinha, da Infância.
Que noite! Ó minha Irmã Maria
Acende um círio à Virgem Pia,
Pelos que andam no alto Mar...
Lá vem a Carlota que embala uma aurora
Nos braços, e diz:
"Meu lindo Menino, que Nossa Senhora
O faça feliz!"
Ao Mundo vim, em terça-feira
Um sino ouvia-se a dobrar!
E António crescendo, sãozinho
Feliz que vivia!
(E a Dor, que morava com ele no peito,
Com ele crescia... )
Vim a subir pela ladeira
E, numa certa terça-feira,
Estive, já para me matar...
Mas foi a uma festa, vestido de anjinho,
Que fado cruel!
E a António calhou-lhe levar coitadinho!
A esponja do Fel...
Ides gelar, águas das fontes
Ides gelar!
A tia Delfina, velhinha tão pura,
Dormia a meu lado
E sempre rezava por minha ventura...
E sou desgraçado!
Águas do rio! Águas dos montes!
Cantigas d'água pelos montes,
Que sois como amas a cantar...
E eu ia ás novenas, em tardes de Maio,
Pedir ao Senhor:
E ouvindo esses cantos, tremia em desmaio,
Mudava de côr!
Passam na rua os estudantes
A vadrulhar...
E a Mãe-Madrinha, do tempo da guerra
A mailos franceses,
Quando ia ao confesso, à ermida da serra,
Levava-me ás vezes.
Assim como eles eu era dantes!
Meus camaradas! Estudantes!
Deixai o poeta trabalhar.
Santinho como ia, santinho voltava:
Pecados? Nem um!
E a instância do padre dizia (e chorava):
"Não tenho nenhum..."
O já, coberto de gangrenas,
Meu avatar!
As noites rezava, (e rezo inda agora)
Ao pé da lareira.
(A chuva gemente caia lá fora,
Fervia a chaleira... )
Conservo as mesmas tuas penas,
Mais tuas chagas e gangrenas,
Que não me farto de coçar!
-Que Deus se amercie das almas do Inferno!
-Amén! Oxalá...
E o moço rosnava, transido de inverno:
-Que bom lá está!
E a neve cai, como farinha,
Lá desse moinho a moer, no Ar.
O sino da Igreja tocava, à tardinha:
Que tristes seus dobres!
Era a hora em que eu ia provar, à cozinha,
O caldo dos Pobres...
Ó bom Moleiro, cautelinha!
Não desperdices a farinha
Que tanto custa a germinar...
Ó velhas criadas! Na roca fiando,
Nos lentos serões:
Corujas piando, Farrusca ladrando
Com medo dos ladrões!
Andais, à neve, sem sapatos.
Vás que não tendes que calçar!
..

Zé do Telhado morava, ali perto:
A triste Viúva
A nossa casa ia pedir, era certo,
Em noites de chuva...
Corpos ao léu, vesti meus fatos!
Pés nus! Levai esses sapatos...
Basta-me um par.
Ó feira das uvas! Em tardes de calma...
(O tempo voou!)
Pediam-me os Pobres "esmola pela alma
Que deus lhe levou!"
Quando eu morrer, hirto de mágoa,
Deitem-me ao mar!
...


António Nobre

Em memória do poeta António Nobre, falecido a 18 de março de 1900.

"Os Poetas são eternos"