100 MYTOS

3.21.2006

Ilhas de Bruma (I)



Saudades Trágico-Marítimas


Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.
Na praia, de bruços,
fico sonhando, fico-me escutando
o que em mim sonha e lembra e chora alguém;
e oiço nesta alma minha
um longínquo rumor de ladainha,
e soluços,
de além...

Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.

São meus avós rezando,
que andaram navegando e que se foram,
olhando todos os céus;
são eles que em mim choram
seu fundo e longo adeus,
e rezam na ânsia crua dos nautrágios;
choram de longe em mim, e eu oiço-os bem,
choram ao longe em mim sinais, presságios,

Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.

Naufraguei cem vezes já...
Uma, foi na nau S. Bento,
e vi morrer, no trágico tormento,
Dona Leonor de Sá:
via nua, na praia áspera e feia,
com olhos implorando
-olhos de esposa e mãe-
e via, seus cabelos desatando,
cavar a sua própria cova e enterrar-se na areia.
-E sózinho me fui pela praia além...

Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.

Escuto em mim, - oiço a grita
da rude gente aflita:
-Senhor Deus, misericórdia!
-Virgem Mãe, misericórdia!
Doidos de fome e de terror varados,
gritamos nossos pecados,
e sai da cada boca rouca e louca
a confissão!
- Senhor Deus, misericórdia!
- Virgem Mãe, misericórdia!
e o vento geme
no bulcão
sem astros;
anoitecemos sem leme,
amanhecemos sem mastros!
E o mar e o céu, sem fim, além...

Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.

Ah, Deus por certo conhece
minha voz que se ergue, branca e sózinha,
- flôr de angústia a subir aos céus varados
p'la dor da ladainha!
Transido, o clamor da prece
do mesmo sangue nos veio
Deus conhece os meus olhos alongados;
onde o mar e o céu diexaram
um pouco de vago anseio
nesse mistério longo do seu halo...
Rezam em mim os outros que rezaram
e choraram também;
há um pranto português, e eu sei chorá-lo
com lágrimas de além...

Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.

Ó meu amor, repara
nos meus olhos, na sua mágua clara!
Ainda é de além
o meu olhar de amor
e o meu beijo também.
Se sou triste, é de outrora a minha pena,
de longe a minha dor
e a minha ansiedade.
Vês como re amo, vês?
Meu sangue é protuguês,
minha pele é morena,
minha graça a Saudade,
meus olhos longos de escutar sem fim
o além, em mim...

Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.


Afonso Lopes Vieira (1912)

Em comemoração do Dia Mundial da Poesia,
o nosso Mar e a outra face da glória dos nossos navegantes
nas palavras de um POETA esquecido pelo tempo,
mas os poetas são eternos...