100 MYTOS

3.22.2006

Ser Poeta é...




Ser Poeta



Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do reino de Aquém e de Além da dor

É ter mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te assim perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!



Florbela Espanca

Ainda a memória do Dia Mundial da Poesia.... 21 de Março

...os Poetas são eternos!

3.21.2006

Ilhas de Bruma (I)



Saudades Trágico-Marítimas


Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.
Na praia, de bruços,
fico sonhando, fico-me escutando
o que em mim sonha e lembra e chora alguém;
e oiço nesta alma minha
um longínquo rumor de ladainha,
e soluços,
de além...

Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.

São meus avós rezando,
que andaram navegando e que se foram,
olhando todos os céus;
são eles que em mim choram
seu fundo e longo adeus,
e rezam na ânsia crua dos nautrágios;
choram de longe em mim, e eu oiço-os bem,
choram ao longe em mim sinais, presságios,

Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.

Naufraguei cem vezes já...
Uma, foi na nau S. Bento,
e vi morrer, no trágico tormento,
Dona Leonor de Sá:
via nua, na praia áspera e feia,
com olhos implorando
-olhos de esposa e mãe-
e via, seus cabelos desatando,
cavar a sua própria cova e enterrar-se na areia.
-E sózinho me fui pela praia além...

Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.

Escuto em mim, - oiço a grita
da rude gente aflita:
-Senhor Deus, misericórdia!
-Virgem Mãe, misericórdia!
Doidos de fome e de terror varados,
gritamos nossos pecados,
e sai da cada boca rouca e louca
a confissão!
- Senhor Deus, misericórdia!
- Virgem Mãe, misericórdia!
e o vento geme
no bulcão
sem astros;
anoitecemos sem leme,
amanhecemos sem mastros!
E o mar e o céu, sem fim, além...

Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.

Ah, Deus por certo conhece
minha voz que se ergue, branca e sózinha,
- flôr de angústia a subir aos céus varados
p'la dor da ladainha!
Transido, o clamor da prece
do mesmo sangue nos veio
Deus conhece os meus olhos alongados;
onde o mar e o céu diexaram
um pouco de vago anseio
nesse mistério longo do seu halo...
Rezam em mim os outros que rezaram
e choraram também;
há um pranto português, e eu sei chorá-lo
com lágrimas de além...

Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.

Ó meu amor, repara
nos meus olhos, na sua mágua clara!
Ainda é de além
o meu olhar de amor
e o meu beijo também.
Se sou triste, é de outrora a minha pena,
de longe a minha dor
e a minha ansiedade.
Vês como re amo, vês?
Meu sangue é protuguês,
minha pele é morena,
minha graça a Saudade,
meus olhos longos de escutar sem fim
o além, em mim...

Chora no ritmo do meu sangue, O Mar.


Afonso Lopes Vieira (1912)

Em comemoração do Dia Mundial da Poesia,
o nosso Mar e a outra face da glória dos nossos navegantes
nas palavras de um POETA esquecido pelo tempo,
mas os poetas são eternos...

3.18.2006

Nobre Poeta


António


Que noite de inverno! Que frio, que frio!
Gelou meu carvão:
Mas boto-o à lareira, tal qual qual estio,
Faz sol de verão!
Nasci num reino d'Oiro e amores,
À beira-mar.
Ó velha Carlota! Tivesse-te ao lado,
Contavas-me histórias:
Assim... desenterro, do Val do Passado,
As minhas Memórias.
Sou neto de Navegadores,
Heróis, Lôbos-d'água, Senhores
Da Índia, d'Áquem e d'Álem-mar!
Moreno coveiro, tocando viola,
A rir e a cantar!
Empresta, bom homem, a tua sachola,
Eu quero cavar:
E o Vento mia! E o Vento mia!
Que irá no Mar!
Erguei-vos, defuntas! Da tumba que alveja
Qual lua, a distância!
Visões enterradas no adro da Igreja
Branquinha, da Infância.
Que noite! Ó minha Irmã Maria
Acende um círio à Virgem Pia,
Pelos que andam no alto Mar...
Lá vem a Carlota que embala uma aurora
Nos braços, e diz:
"Meu lindo Menino, que Nossa Senhora
O faça feliz!"
Ao Mundo vim, em terça-feira
Um sino ouvia-se a dobrar!
E António crescendo, sãozinho
Feliz que vivia!
(E a Dor, que morava com ele no peito,
Com ele crescia... )
Vim a subir pela ladeira
E, numa certa terça-feira,
Estive, já para me matar...
Mas foi a uma festa, vestido de anjinho,
Que fado cruel!
E a António calhou-lhe levar coitadinho!
A esponja do Fel...
Ides gelar, águas das fontes
Ides gelar!
A tia Delfina, velhinha tão pura,
Dormia a meu lado
E sempre rezava por minha ventura...
E sou desgraçado!
Águas do rio! Águas dos montes!
Cantigas d'água pelos montes,
Que sois como amas a cantar...
E eu ia ás novenas, em tardes de Maio,
Pedir ao Senhor:
E ouvindo esses cantos, tremia em desmaio,
Mudava de côr!
Passam na rua os estudantes
A vadrulhar...
E a Mãe-Madrinha, do tempo da guerra
A mailos franceses,
Quando ia ao confesso, à ermida da serra,
Levava-me ás vezes.
Assim como eles eu era dantes!
Meus camaradas! Estudantes!
Deixai o poeta trabalhar.
Santinho como ia, santinho voltava:
Pecados? Nem um!
E a instância do padre dizia (e chorava):
"Não tenho nenhum..."
O já, coberto de gangrenas,
Meu avatar!
As noites rezava, (e rezo inda agora)
Ao pé da lareira.
(A chuva gemente caia lá fora,
Fervia a chaleira... )
Conservo as mesmas tuas penas,
Mais tuas chagas e gangrenas,
Que não me farto de coçar!
-Que Deus se amercie das almas do Inferno!
-Amén! Oxalá...
E o moço rosnava, transido de inverno:
-Que bom lá está!
E a neve cai, como farinha,
Lá desse moinho a moer, no Ar.
O sino da Igreja tocava, à tardinha:
Que tristes seus dobres!
Era a hora em que eu ia provar, à cozinha,
O caldo dos Pobres...
Ó bom Moleiro, cautelinha!
Não desperdices a farinha
Que tanto custa a germinar...
Ó velhas criadas! Na roca fiando,
Nos lentos serões:
Corujas piando, Farrusca ladrando
Com medo dos ladrões!
Andais, à neve, sem sapatos.
Vás que não tendes que calçar!
..

Zé do Telhado morava, ali perto:
A triste Viúva
A nossa casa ia pedir, era certo,
Em noites de chuva...
Corpos ao léu, vesti meus fatos!
Pés nus! Levai esses sapatos...
Basta-me um par.
Ó feira das uvas! Em tardes de calma...
(O tempo voou!)
Pediam-me os Pobres "esmola pela alma
Que deus lhe levou!"
Quando eu morrer, hirto de mágoa,
Deitem-me ao mar!
...


António Nobre

Em memória do poeta António Nobre, falecido a 18 de março de 1900.

"Os Poetas são eternos"

3.16.2006

Olhos de Poeta




Os olhos do poeta


O poeta tem olhos de água
para refletirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas,
mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério
que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo
na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras
dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas
dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães
que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas
onde se falam todas as linguas da terra
e o gesto desolado dos homens
que voltam ao lar com as mão vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula,
e os gestos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras
sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados
maravilhando com contos-de-fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores
esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar
amaldiçoando a tempestade:
-todas as cores, todas as formas do mundo se agitam
e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar,
que é um farol erguido no alto dum promontório,
sai uma estrela voando nas trevas
tocando de esperança o coração
dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida,
perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta
com tinta de sol na noite de angustia que pesa no mundo.


Manuel da Fonseca


3.12.2006

Éclogas Camonianas


Piscatória

Arde por Galateia branca e loura,
sereno, pescador pobre, forçado
de uma estrela cruel que à mingua moura.

Os outros pescadores têm lançado
no Tejo as redes; ele só fazia
este queixume ao vento descuidado:

«Quando virá, formosa Ninfa, o dia
em que te possa dar a conte estreita
desta doudice triste e vã porfia?

Não vês que me foge a alma e que me enjeita,
buscando num só riso da tua boca,
nos teus olhos azuis, mansa colheita?

Se a esse espírito alguma mágoa toca,
se de Amor fica nele uma pegada,
que te vai, Galateia, nesta troca?

Dar-te-ei minha alma; lá ma tens ruobada;
não ta demandarei; dá-me por ela
uma só volta de olhos descuidada.

Se muito te parece, e minha estrela
não consentir ventura tão ditosa,
dou-te as asas do Amor perdidas nela.

Que mais te posso dar, Ninfa formosa,
minha tormenta triste não sossega;
arde o peito em vão, em vão suspira.

Ao romper dálva anda a névoa cega
sobre os montes da Arrábida viçosos,
enquanto a eles a luz do sol não chega.

Eu vejo aparecer outros formosos
raios, que graça e côr ao céu roubaram;
ficam meus olhos cegos mais saudosos.

Quantas vezes as ondas se encresparam
com os meus suspiros! Quantas com o meu pranto
se pararam com mágua e me escutaram!

Se na força da dor a voz levanto,
e ao som do remo que a água vai ferindo
por alta lua meu cuidado canto,

os maviosos delfins me estão ouvindo;
a noite sossegada; o mar calado.
Só, Galateia, foges e vás rindo.

Estranhas, porventura, o mar cercado
da fraca rede, a barca ao vento solta,
e um pobre pescador aqui lançado?

Antes que o sol dê no céu uma vota
se pode melhorar minha ventura,
como acontece aos outros, n'água envolta.

Igual preço não é da formosura
areia de ouro, que o rico Tejo espraia,
mas um amor para sempre dura.

Vejam teus olhos, bela Ninfa, a praia;
verás teu nome na mimosa areia.
nunca sobre ele o mar com fúria saia,

que até agora nem vento a ar salteia!
Três dias há que escrito aqui o deixou
Amor, guardando-o a toda a força alheia.

Ele com suas mãos mesmo ajudou
escolher estas conchas, que guardando,
uma a uma para ti só juntou.

Um ramo te colhi de coral brando;
antes que o ar lhe desse, paracia
o que eu de tua boca estou cuidando.
Ditoso se o soubesse inda algum dia!»


Luís Vaz de Camões


Celebrando os 473 anos da publicação de Os Lusíadas
publicados a 12 de Março de 1572.

3.11.2006

O Ser e o Sentir



Lágrimas Ocultas


Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era q'rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi noutra vida...


E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das Primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono esquecida!


E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair de mim!




Eu


Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...


Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...


Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...


Sou talvez a visão que alguém sonhou,
Aguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou!


Florbela Espanca

3.10.2006

Memórias visuais

O pôr do sol na "Terra" do "Bloger".
A baia de S. Martinho do Porto...
O cromatismo do tempo que passa,
Reflexos naturais na meditação que fica.



Memória dos Açores, ... a Lagoa das Sete Cidades.
Local de encanto, ... de espanto pela beleza singular,
Garantia de um local único.
A arte da natureza em estado puro.





Ainda os Açores.
O encanto e a serenidade da natureza.
Entre a tempestade que é a luta pela vida,
... um momento de bonança.




A costa atlântica portuguesa esculpida pelo tempo, para contentamento dos nossos olhos... Nazaré terra de todos e de ninguém.



Memórias visuais retiradas do "bau analógico" do "bloger".

Outras viram,... ao sabor do tempo.

3.08.2006

Cansado...



Cansado até os deuses que não são


Cansado até os deuses que não são...
Ideais, sonhos... Como o sol é real
E na objectiva coisa universal
Não há no meu coração...
Eu ergo a mão.

Olha-o de mais, e o que ela é não sou eu.
Entre mim e o que sou há a escuridão.
Mas o que são isto a terra e o céu?

Houvesse ao menos visto,
Visto que a verdade é falsa,
Qualquer coisa verdadeira
De outra maneira
Que a impossível certeza ou realidade.

Houvesse ao menos, sem o sol do mundo,
Qualquer postiça realidade não
O eterno abismo sem fundo,
Crível talvez,mas tenho coração.

Mas não há nada, salvo tudo sem mim.
Crível por fora da razão, mas sem
Que a razão acordasse e visse bem,
Real com o coração...

...


Fernando Pessoa

3.05.2006

All That Jazz






Charleston


O jazz

Zurze, risca losangos, gumes,

Planos, ângulos sonoros motes

Arrancados de dentro de pandeiretas, cornetas, tomballs, serrotes,

Tocados por Hotentotes saltitantes

Que rasgam o espaço côncavo

Com os fortes botes

Dos sonoros motes volantes

Do jazz-band d'Ho-ten-to-tes...

..

Andam no ar jogos malabares de fogos de Bengala,

Num batuque d'Hotentotes... d'Ho-ten-to-tes

Sal-ti-tan-tes no redondel duma senzala.

E ela surge, toda nua,

Sob a poalha luminosa e crua

D'um foco d'arco voltaico,

Que, incendiando o mosaico

De sua pele tatuada e cores,

Lhe dá o aspecto bizarro

D'um bronze colorido,

D'um manipanso Hotentote.

O seu corpo, asa que desgarra,

Esmurra, esbarra,

Em movimentos agéis,

Eléctricos,

Com os sons do jazz

Pensamentos alados de Ferrabaz

Que esvoaçam, velozes, velozes no espaço.

As pernas são apenas

Dois movimentos instáveis,

Trémulos, nos espaços,

Em malabárico jogo.

E so braços,

Duas antenas vibráteis,

Duas asas de fogo e cor

Numa pluma de labareda.

Os olhos são duas puas,

Acerados gumes,

Agudos ângulos,

Orgias de fogos e lumes,

Facas de prestigitador sonâmbulo.

..

Seu corpo, cansado e bambo

-Tomba

Sobre almofadas de Damasco, Raz,

E penas de Trebisonda.

E o jazz

Continua, jà lassa a pele dos bombos,

Bambas as cordas dos banjos.

Entretanto o jazz zurze, risca

O espaço também já lasso e bambo.

..

..

António Navarro

3.02.2006

Douro navegado pela minha infância.





Viagens na Minha Terra

..

Ás vezes, passo horas inteiras

Olhos fitos nestas traseiras,

Sonhando o tempo que lá vai;

e jornadeio em fantasia

Essas jornadas que eu fazia

Ao velho douro, mais o meu pai.

..

Que pitoresca era a jornada!

Logo, ao subir da madrugada,

Prontos os dois para partir:

- Adeus! adeus! é curta a ausência,

Adeus! - rodava a diligência

Com campaínhas a tinir!

..

E, dia e noite, aurora a aurora,

Por essa doida terra fora,

Cheia de cor, de luz, de som,

Habituado à minha alcova

Em tudo eu via coisa nova,

Que bom que era, meu Deus! Que bom!

..

Moinhos ao vento! Eiras! Solares!

Antepassados! Rios! Luares!

Tudo isso eu guardo, aqui ficou:

Ó paisagem etérea e doce,

Depois do ventre que me trouxe

A ti devo tudo o que sou!

..

No arame oscilante do fio,

Amavam (era mês do cio)

Lavandiscas e tentilhões...

Águas do rio vão passando

Muito mansinhas, mas, chegando

Ao mar, transformando-se em leões!

..

Ao sol, fulgura o Oiro dos milhos!

Os lavradores mai-los filhos

A terra estrumam, e depois

Os bois atrelam ao arado

E ouve-se além, no descampado

Num ímpeto, aos berros: - Eh! Bois!

..

E, enquanto a velha mala-posta,

a custo vai subindo a encosta

Em mira ao lar dos meus avós,

Os aldeãos, de longe, alerta,

Olham pasmados, boca aberta...

A gente segue e deixa-os sós.

..

Que pena faz ver os que ficam!

Pobres, hunildes, não implicam,

Tiram com respeito o chapéu:

Outros, passando a nosso lado,

Diziam: "Deus seja Louvado!"

"Louvado seja!" dizia eu.

..

E, meiga, tombava a tardinha...

No chão, jogando a vermelhinha,

Outros vejo a discutir.

Carpiam, místicas, as fontes...

Água fria de Trás-os-Montes

Que faz sede só de se ouvir!

..

E, na subida de Novelas,

O rubro e gordo Cabanelas

Dava-me as guias para a mão:

Isso... queriam os cavalos!

Que eu não podia chicoteá-los...

Era uma dor de coração.

..

Depois, cansados da viagem,

Repoisávamos na estalagem

(Que era em Casais, mesmo ao dobrar...)

Vinha a Sra. Ana das Dores

"Que hão-de querer os meus senhores?

Há pão e carne para assar..."

..

Oh! ingénuas mesas, honradas!

Toalhas brancas, marmeladas,

Vinho virgem no copo a rir...

O cuco da sala, cantando...

(Mas o Cabanelas, entrando,

Vendo a hora: É preciso partir").

..

Caia a noite. Eu ia fora,

Vendo uma estrela que lá mora,

No firmamento português:

E ela traçava-me o meu fado

"Serás poeta e desgraçado!"

Assim se disse, assim se fez.

..

Meu pobre Infante, em que cismavas,

Por que é que os olhos profundavas

No céu sem-par de teu País?

Ias, talvez, moço troveiro,

A cismar num amor primeiro:

Por primeiro, logo infeliz...

..

E o carro ia aos solavancos.

Os passageiros, todos brancos,

Ressonavam nos seus gabões:

E eu ia alerta, olhando a estrada,

Que em certo sítio, na Trovoada,

Costumavam saír ladrões.

..

Ladrões! Ó sonho! Ó maravilha!

Fazer parte duma quadrilha,

Rondar, á lua , entre pinhais!

Ser Capitão! trazer pistolas,

Mas não roubando, - dando esmolas

Dependurados dos punhais...

..

E a mala-posta ia indo, ia indo.

O Luar, cada vez mais lindo,

Caía em lágrimas, - e, enfim,

Tão pontual, ás onze e meia,

Entrava, soberba, na aldeia

Cheia de guizos, tlim, tlim, rlim!

..

Lá vejo ainda a nossa casa

Toda de lume, cor de brasa,

Altiva, entre árvores, tão só!

Lá se abrem os portões gradeados,

lá vêm com velas os criados,

Lá vêm, sorrindo, a minha Avó.

.....

.....

.....

António Nobre ..." As Viagens na Minha Terra"